Apresentacao: 100 anos da revolucao que transformou o mundo e sua atualidade.

AutorDemier, Felipe

Quando a Revolucao Francesa completou seu bicentenario, em 1989, Eric Hobsbawn percebeu como as polemicas que entao se davam sobre o tema permitiram dividir seus participantes em dois campos: os defensores e os adversarios da Grande Revolucao. Naquela ocasiao--destacou Hobsbawn--, em funcao do avanco do neoliberalismo, predominavam no mainstream academico, jornalistico e politico os participantes do segundo campo. Atualmente, o mesmo parece ja ocorrer com o centenario sovietico. Embalados pela Onda Conservadora, os amantes da ordem atual reacionaria se esforcam para deslegitimar os feitos de Outubro de 1917.

Dessa perspectiva, os adversarios contemporaneos de Outubro parecem apenas reeditar o esquema analitico dos adversarios neoliberais da revolucao francesa, substituindo apenas os personagens da trama: se o "ignorante" proletariado de Sao Petersburgo assume o papel dos "raivosos" sans-culottes parisienses, o "criminoso" partido bolchevique toma o lugar do "terrorista" clube jacobino e, obvio, os tiranos Lenin, Trotsky, Sverdlov e demais artifices da tomada do Palacio de Inverno substituem os "irasciveis" Robespierre, Danton, Marat e cia.

Destaquemos aqui, brevemente, tres aspectos que estruturam as narrativas produzidas por este grande campo liberal dos interpretes de Outubro.

O primeiro deles refere-se ao culto a democracia liberal como a forma plena e perfeita de organizacao politica. A essa dimensao idealista, soma-se um indisfarcavel anacronismo. Nao so a democracia representativa--com todos os seus inexpugnaveis ingredientes repressivos contra o movimento operario, nao custa lembrar--so existia, quando da Revolucao de Outubro, em algumas poucas nacoes originarias do capitalismo industrial, como o desenvolvimento desigual e combinado da industrializacao na formacao historico-social atrasada russa nao permitia que um regime democratico-liberal aparecesse como uma opcao exequivel.

Esta impossibilidade democratico-liberal ficou evidente em todo o comportamento da burguesia russa ao longo das duas primeiras decadas do seculo XX. Sem jamais ter desafiado o absolutismo czarista empunhando um programa democratico, tal burguesia foi conduzida ao poder em fevereiro de 1917 por meio de uma revolucao popular na qual ela nao tomou parte. O Governo Provisorio nao foi capaz de alterar a estrutura agraria nobiliarquica do pais, nao atendeu as reivindicacoes por direitos sociais dos trabalhadores, nao garantiu nenhum direito as nacionalidades oprimidas pelo imperio czarista, protelou as eleicoes para uma assembleia constituinte e, por fim, nao ousou retirar o pais de uma guerra a qual, interessante apenas para as burguesias imperialistas do Ocidente, lhe custava milhoes de vidas camponesas no front. Alem disso, o apoio da burguesia russa ao levante de Kornilov deixou evidente que a classe dominante do pais buscava derrubar o seu proprio Governo Provisorio (por demais "democratico") e substitui-lo por uma ditadura militar restauracionista.

Desse modo, nao seria equivocado dizer que os liberais historiadores de hoje sao os unicos que desejam verdadeiramente que houvesse sido instaurada uma democracia liberal na Russia de 1917, ao passo que os liberais de ontem, mais realistas, sabiam muito bem que so uma ditadura poderia lhes salvar a propriedade.

O segundo aspecto a ser destacado referente a estas tendencias historiograficas hostis a Outubro e sua juncao proposital entre duas fases distintas do processo aberto com a tomada do poder pelos bolcheviques, o que se verifica na concepcao de que o stalinismo teria sido uma evolucao natural do leninismo. Para refutar essa tese bastaria assinalar o fato de que, sob ordens de Stalin, os revolucionarios do periodo 1917-1924, entre eles praticamente todos os membros do comite central presidido por Lenin, foram presos, enviados a campos de trabalho forcado e fuzilados. Falta aos adeptos da tese da continuidade Lenin-Stalin explicar por que o ultimo, um "mero continuador", teve que eliminar praticamente todos os aliados do primeiro, "seu mestre".

Os interpretes liberais de Outubro se refugiam na afirmacao de que, sob o comando de Lenin e Trotsky, o aparelho repressivo tambem vitimou milhares de pessoas. Esses interpretes tratam, todavia, a violencia de maneira abstrata e desconsideram o conteudo historico da repressao praticada pelo jovem regime revolucionario, imerso em uma guerra civil resultante da ofensiva militar desencadeada pela restauracao e por exercitos de nacoes capitalistas. Salvo condenaveis excecoes (como em...

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