Uma ideia de antropofagia jurídica aplicada ao direito comparado e internacional

AutorRodrigo de Almeida Leite
Páginas47-62
UMA IDEIA DE ANTROPOFAGIA JURÍDICA APLICADA AO DIREITO
COMPARADO E INTERNACIONAL
A VIEW OF LEGAL ANTHROPOPHAGY APPLIED TO COMPARATIVE AND
INTERNATIONAL LAW
Rodrigo de Almeida Leite
1
“Queremos a Revolu ção Caraíba. Maior que a Revolução
Fra ncesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na
direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a
sua pobre declaração dos direitos do homem”.
(Oswald de Andrade Manifesto Antropofágico)
Resumo: O presente ensaio pretende abordar a forma como a Antropofagia adaptada ao
movimento (pensamento) cultural defendido por Oswald de Andrade na Semana de Arte
Moderna de 1922 (e posteriormente) pode ser aplicada no direito. No caso específico,
defendemos uma ideia de “antropofagia jurídica” aplicada ao direito comparado e
internacional. No âmbito deste último, procuramos ainda especificar de que modo esta
“técnica” pode ser utilizada para dialogar com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
e a imposição da regra do Controle de Convencionalidade, que foi criada
jurisprudencialmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Palavras-chave: antropofagia jurídica, direito comparado, direito internacional.
Abstract: This essay aims to discuss how Anthropophagy - adapted to the movement
(thought) cultural advocated by Oswald de Andrade at the Week of Modern Art in 1922 (and
later) - can be applied to the law. In the specific case, we advocate an idea of "legal
anthropophagy" applied to comparative law and international. Under the latter, we also
specify how this "technique" can be used to communicate with the Inter-American System of
Human Rights and the rule of Conventionality Control, which was created by the
jurisprudence of the Inter-American Court of Human Rights.
Keywords: legal anthropophagy, comparative law, international law.
Considerações iniciais
A ideia de uma antropofagia jurídica aplicada ao direito surge a partir do
conhecimento do direito estrangeiro (e internacional), que tem sido aplicado (ou pelo menos
procurado ser) diretamente no Brasil sem as devidas proporções e adaptações. Ou seja, busca-
se aplicar no Brasil um direito que em grande parte é criado em sociedades bastante
desenvolvidas sem a menor crítica. Para observar esta afirmação, basta-se ver a grande
quantidade de jurisprudência e doutrina alemã e norte-americana citada pelo Supremo
Tribunal Federal em seus julgados. Contudo, muitas vezes os tribunais não fazem uma análise
criteriosa dos demais aspectos que têm influência na efetividade de determinada legislação
estrangeira: aspectos sociais, políticos, culturais, filosóficos e econômicos.
Por sua vez, o movimento antropofágico surge com uma elite paulista das décadas de
10 e 20 do século passado que tinha conhecimento da arte e da cultura europeia, e que não
mais aceitava aqueles padrões milimétricos europeus. Procurava uma cultura identitária, uma
cultura que mostrasse de fato a realidade brasileira, a cultura brasileira, com todas as suas
1 Mestre em Direito Comunitário pela Universidade Clássica de Lisboa. Doutor em Direito pela Universidade de
Salamanca. Professor de Direito Constitucional d a Universidade Federal Rural do Semiárido UFERS A.
Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Administrativo e Constitucional GP DAC-UFERSA. E-mail:
roalmleite@gmail.com.
necessidades, maleabilidade e, porque não dizer também, uma certa dose de “malícia”, não no
sentido pejorativo do termo, mas malícia no sentido de autoadaptação e autorresolução de
problemas jurídico-sociais a partir de uma consciência nacional-local, e não através de
padrões impostos de cima para baixo, sem a menor consciência de uma realidade local, do
reconhecimento de padrões culturais locais.
2
Nesse contexto, antes de querer fazer parte de uma “elite cultural”, o que nós
queremos com este escrito sobre antropofagia jurídica aplicada ao direito é humildemente
causar uma reflexão doutrinária na comunidade científica que lida com o direito nacional e
internacional em dois aspectos: a) sobre a importância de se fazer um adequado uso do direito
de outros países, e aqui se fala no cuidado e métodos que se deve ter na importação da
legislação de outros Estados. Estamos falando não propriamente de um direito internacional,
mas de um direito comparado; b) a aplicação das normas internacionais de direitos humanos e
o cumprimento de decisões de tribunais internacionais, como a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, pelo ordenamento e órgãos jurídicos nacionais, fazendo-se uma análise
crítica se, de fato, o que deve ser feito é a aceitação direta destes parâmetros internacional-
regionais, mesmo quando esses padrões são contrários ou em desacordo com a cultura ou a
realidade jurídico-social nacional.
Frise-se que Oswald de Andrade em seu manifesto antropofágico assim se manifestou:
“Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as
revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre
declaração dos direitos do homem”. Entendemos que esse alerta proferido tem relação com o
que por ora debatemos: o direito deve estar a serviço do homem, ou o homem deve estar a
serviço do direito? As normas internacionais de direitos humanos devem ser aplicadas mesmo
quando não estão em acordo com a realidade local, ou deve-se buscar “a unificação de todas
as revoltas eficazes na direção do homem”? Afinal, são normas de direitos humanos e, então,
em vez de aplicá-las diretamente, será que não seria mais sensato aproveitar o que de melhor
elas possuem, temperá-las com as nossas necessidades, reestruturá-las e aplicar o que for
necessário e mais benéfico ao homem? Talvez esta seja a peça chave da nossa antropofagia
jurídica.
Uma questão importante que também será levada em consideração neste ensaio é não
apenas a relação quase “vertical” (ainda que teoricamente horizontal) entre a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (tribunal internacional por excelência) e o Poder
Judiciário interno dos países, mas também saber se é possível um diálogo transversal inverso,
no sentido que este tribunal internacional possa também compreender que há realidades locais
a serem levadas em consideração em seus julgamentos, e que ela pode também “aprender”
com os tribunais nacionais e não aplicar meramente seus padrões jurídicos regionais.
2 Sobre este ponto, Raul B opp, participante do movimento de 22, assim testemunha: “Havia, em São Paulo, uma
pequena elite culta, que ia e vinha todos os anos da Europa. Uma seminobreza rural, com longas tradições de
família, florescia à base d o café. Eram tempos tranquilos e de fartura plena. Latifúndios opulentos. Cafezais a se
perderem de vista. O reduzido grupo de pessoas de bom gosto e cultas, que fazia regularmente as suas viagens
transatlânticas, não ficava indiferente aos fatos mais notórios da vida artística europeia. Ouviam os diálogos de
um mundo em plena transformação. Em contato com artistas de vanguarda, procuravam conhecer as várias
modalidades da pintura mod erna e suas sutilezas técnicas. De volta a São Paulo, traziam co nsigo peças
adquiridas, de p intura figurativa o u de correntes abstracionistas. E explicavam aos amigos os princípios básicos
desses movimentos. Com as novas te ndências plásticas, o artista estava em ple no domínio de expressão, isto é,
podia exprimir livremente as suas criações, com maneiras que lhe eram peculiares, emancipado de qualquer
formulário estilístico. Uma vez, numa roda de intelectuais, a conversa se espalhou pelos meandros regionalistas,
até escorregar numa pergunta: Por que é que, em São Paulo, não se passava a limpo aquele “Brasil” de Paris,
para d ar início a uma renovação geral das artes? Elas estavam completamente subtraídas da atualidade, numa
situação desalentadora. Davam uma melancólica sensação de atraso. Os wald de Andrade denunciava: ‘Estamos
atrasados de ci nquenta anos em cultura, c hafurdados em pleno parnasianismo’”. BOPP, Raul. Vida e morte da
antropofagia. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006, p. 37-38.

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