Animais não humanos: sujeitos de direitos despersonificados

AutorCélia Regina Ferrari Faganello Noirtin
CargoProfessora Adjunta I do Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas ? CCAAB da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - Campus de Cruz das Almas/BA ? Brasil
Páginas133-152

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1. Introdução

Conforme apregoa a Declaração Universal dos Direitos dos Animais: "(...) todos os animais possuem direitos"; "(...) o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo" (UNESCO, 1978). Nesse entendimento a World Society for the Protection of Animals proclama: "A coexistência das espécies no mundo e o respeito pelos animais por parte do homem, estão diretamente ligados ao respeito dos homens entre si" (WSPA, 2007). Baseiam-se essas ideologias nas doutrinas éticas dos filósofos Jeremy Benthan, Peter Singer e Desmond Morris. O primeiro é o fundador da doutrina do Utilitarismo, a qual prescreve a ação (ou inação) de forma a otimizar o bem-estar do conjunto dos seres sencientes (BENTHAN, 1984). O segundo defende o Princípio da Igual Consideração de Interesses Semelhantes, segundo o qual, em nossas deliberações morais, devemos atribuir o mesmo peso aos interesses semelhantes de todos que são atingidos por nossos atos (SINGER, 2002). Assim o tratamento de humanos e nãohumanos requer igual consideração. O terceiro é autor do livro "O contrato animal". No mesmo sentido FRANCIONE (2006), em seu texto "Pour l’abolition de l’animal-esclave", apregoa o princípio de igualdade de consideração, referindo-se ao massacre dos animais como um ato do ser humano contra si próprio, praticado devido ao fato do homem estar mergulhado em relações sociais que o cegam. Segundo ele, enxergar nas outras espécies seres que sentem e sofrem é um enorme passo para nos livrarmos das brutalidades que cometemos entre nós mesmos. Em 1997, a União Européia assinou um protocolo de proteção e bem estar animal, reconhecendo que animais são seres sensíveis, capazes de sofrimento (TREATY OF AMSTERDAM, 1997) corroborando com doutrina ética de Jeremy Benthan. Expandido o foco deste estudo para a importância de cada animal nos ecossistemas, MORRIS (1990), sustenta a teoria de que, o ser humano

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ao romper o "contrato animal", cuja base é a idéia de que cada espécie deve limitar seu crescimento populacional de forma a permitir coexistência com outras espécies, está ameaçando sua própria existência. Segundo ele, a capacidade dos animais de equilibrar suas espécies em harmonia com a natureza, deveria ser aprendida como regra para sobrevivência humana, uma vez que, o mundo globalizado está levando nossos recursos naturais à extinção por culpa do antropocentrismo e especismo.

2. Desenvolvimento

Primeiramente, é pertinente trazer a definição jurídica de sujeito de direito. Da lição clássica de renomados doutrinadores, extraem-se definições de sujeito de direito. Para Clóvis Beviláqua, "sujeito de direito é o ser, a que a ordem jurídica assegura o poder de agir contido no direito" (BEVILÁQUA, 1980, p. 58). Para Orlando Gomes, "sujeito de direito é a pessoa a quem a lei atribui a faculdade ou a obrigação de agir, exercendo poderes ou cumprindo deveres" (GOMES, 1998, p. 142). Maria Helena Diniz teoriza: "pessoa é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito" (DINIZ, 1993, p. 461). Para Washington de Barros Monteiro "na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é o sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica" (MONTEIRO, 1988, p. 56).

Assim, para a doutrina clássica, o sujeito de direito é a quem a ordem jurídica atribui a faculdade, o poder ou a obrigação de agir, exercendo poderes ou cumprindo deveres.

Ensina Fábio Ulhôa Coelho que são sujeitos de direito, entre outros, as pessoas naturais (homens e mulheres nascidos com vida), os nascituros (homens e mulheres em gestação no útero), as pessoas jurídicas (sociedades empresariais, cooperativas, fundações, etc.), o condomínio edilício, a massa falida (COELHO, 2003, p. 138-139).

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BEVILÁQUA (1980) distingue os termos "pessoa" e "sujeito". Segundo o autor, a idéia de pessoa oferece dois aspectos, o ativo e o passivo enquanto o sujeito de direito é a pessoa em sua posição ativa. "Sujeito de direito é o homem e, em razão dele e por causa dele, é que o direito se constitui - omne ius hominum causa constitutum est" (BEVILÁQUA, 1980, p. 58). No mesmo entendimento corroboram, Caio Mário da Silva Pereira e Washington de Barros Monteiro (PEREIRA, 2004; MONTEIRO, 1988). Assim, segundo a doutrina jurídica clássica, seguindo a teoria da equiparação (sujeito de direito = pessoas), as coisas inanimadas e os animais não podem ser sujeitos de direito.

Todavia, a clássica concepção de que apenas o ser humano - capaz de assumir direitos e obrigações - pode figurar como sujeito de direito, vem sendo substituída pela idéia de que os animais também possuem direitos. Embora alguns juristas reconheçam a existência de um direito especial de proteção aos animais, a idéia de considerar o animal não apenas como bem móvel ou coisa, mas como sujeitos de direito, se consolida à medida que se reconhece que os direitos não devem ser atribuídos a um ser somente pela sua capacidade de falar ou pensar mas também pela sua capacidade de sofrer.

Hans Kelsen não considerava absurda a idéia de se conferir aos animais o status de sujeitos de direito, aduzindo que a relação jurídica não se dá entre o sujeito do dever e o sujeito de direito, mas entre o próprio dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde. Assim, o direito subjetivo é o reflexo de um dever jurídico, uma vez que a relação jurídica é uma relação entre normas, ou seja, entre uma norma que obriga o devedor e outra que faculta ao titular do direito exigi-lo (Kelsen citado por SANTANA et. al, 2005).

Nesse sentido, o filósofo Peter Singer, defende a igualdade entre todos os seres e sustenta a tese de que, o especismo é "um preconceito indefensável e semelhante em tudo ao racismo", uma vez que dispõe os animais fora da consideração moral, considerando os mesmos meros objetos (SINGER, 2004).

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LOURENÇO (2008) em brilhante defesa da tese do animal como sujeito de direito, aduz que existem sujeitos de direitos personificados e despersonificados. Dentre os primeiros é possível citar as pessoas humanas e as pessoas jurídicas. Segundo o autor, o mesmo ocorre com os não-personificados, dentre os quais pode-se citar os despersonalizados humanos, como o embrião e os não-humanos, como os entes do artigo 12 do Código de Processo Civil e os animais.

No mesmo entendimento a doutrinadora Edna Cardoso Dias, ensina que da mesma forma que as pessoas jurídicas possuem direitos de personalidade e podem comparecer em Juízo para pleiteá-los, os animais também se tornam sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem e, embora não sejam capazes de fazer valer esses direitos, cabe ao Poder Público e à coletividade fazê-lo (DIAS, 2008). E conclui: o fato de o homem ser juridicamente capaz de assumir deveres em contraposição a seus direitos, e inclusive de possuir deveres em relação aos animais, não pode servir de argumento para negar que os animais possam ser sujeitos de direito. É justamente o fato dos animais serem objeto de nossos deveres que os fazem sujeitos de direito, que devem ser tutelados pelos homens.

Assim, a incapacidade dos sujeitos de direito não-humanos de postular em Juízo, é sanada, no direito brasileiro, pela representação, instituto jurídico através do qual aqueles considerados incapazes de exercer os atos da vida civil, podem, através de seus representantes legais, fazê-lo. Este pensamento está amparado pela Constituição de 1988, como será demonstrado mais adiante.

O Código Civil brasileiro de 1916 considerava os animais como coisas, bem semoventes, objetos de propriedade e outros interesses alheios: "bens móveis suscetíveis de movimento próprio" (artigo 47); "coisas sem dono sujeitas à apropriação (artigo 593) ou, simplesmente "caça" (artigos 596 a 598) (LEVAI, 2008). O Novo Código Civil de 2002 manteve, em seu artigo 82, apenas

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o dispositivo contido no artigo 47 do Código de 1916, sendo que os outros dois artigos não possuem dispositivo correspondente no Código de 2002. O artigo 82 da Constituição dispõe que "são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio [...]", assim, os animais continuam sendo considerados coisa ou semovente, sendo portanto, suscetíveis de apropriação pelas pessoas, desde que a legislação ambiental permita. Ao comentar o Código Civil brasileiro, MACHADO (2005, p. 751) salienta que o mesmo foi concebido à luz do direito romano, o qual considerava o animal como propriedade do homem:

As espécies animais em relação ao homem tinham, no passado, repercussão jurídica não preponderante no que concerne à conservação e defesa das espécies e de seus habitats, mas nos aspectos referentes aos modos pelos quais o homem poderia tornar-se proprietário ou como viria a perder a propriedade dos animais.

E, em termos penais, os animais porventura lesionados não figuram como...

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