O Angustiante Dever de Decidir e a Pessoa do Juiz: Um Diálogo Entre a Psicanálise e o Direito Sobre o Juiz das Garantias

AutorDenise Luz - Leon Murelli Silveira
CargoAdvogada, Mestre em Ciências Criminais (PUCRS), Especialista em Direito do Estado (UFRGS) - Mestrando em Ciências Criminais (PUCRS), Psicólogo
Páginas6-19

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O presente trabalho objetiva desvelar o instituto do juiz das garantias, referindo-se à figura do juiz posicionada no âmbito do direito processual penal, na fase de investigação pré-processual. como garante dos direitos fundamentais do investigado tal qual previsto no artigo 14 do Projeto de Lei 156/09 do Senado Federal, aprovado em dezembro de 2010 e encaminhado à Câmara dos Deputados para revisão, onde tramita sobn. 8.045/10.

A análise feita centra-se em dois focos de discussão distintos, mas totalmente interpenetráveis e complementares: sob o ponto de vista jurídico-processual e sob a ótica da psicanálise.1

A opção por esse conteúdo de abordagem deve-se ao fato de a instituição do juiz de garantias mostrar-se como um mecanismo processual que pretende reduzir os danos promovidos pelos pré-juízos2 gerados pelas valorações promovidas pelo magistrado antes do contraditório. Os mecanismos psíquicos que geram esses pré-juízos e as consequências que deles advêm são explicados pela psicologia e não pelo direito. A este cabe aceitar sua existência e criar mecanismos para minimizar seus efeitos, que podem minar a estrutura de garantias processuais do sistema acusatório.

A psicanálise explica que o envolvimento na investigação implica um investimento psíquico na tarefa inquisitiva. Isso acarreta construções racionais e atribuições de valores e afetos na tomada de decisão. Todas essas representações são internalizadas e negadas ao se tentar exercitar a neutralidade em um esforço consciente, mas podem emergir como conteúdos inconscientes desloca-

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dos e engatilhar mecanismos de defesa que tornam o juiz predisposto a continuar a linha dos afe-tos, pensamentos e investimentos pulsionais que traz da investigação: a tese da acusação criada na inquisição. Por isso, inicia-se a abordagem sobre o perfil do juiz das garantias proposto no proje-to de reforma do Código de Processo Penal (CPP), expondo sua distinção do juiz de instrução adotado em alguns países europeus, as razões que justificam sua criação e os principais argumentos contra sua instituição.

Depois, faz-se uma breve análise psicanalítica, demonstrando como a atuação do juiz na investigação pode comprometer sua imparcialidade para o julgamento do processo em razão de mecanismos psíquicos inconscientes, os quais ele não pode controlar. Nessa parte, mostra-se por que a adoção do juiz das garantias pode funcionar como um eficiente redutor de danos causados pelo envolvimento do juiz com o caso penal.

Por último, apresentam-se decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) que constataram a perda da imparcialidade objetiva do magistrado que participa da investigação para julgar o processo, buscando identificar qual o legado que tais precedentes deixaram para o direito processual penal brasileiro.

Encerra-se com breves considerações finais sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, mas com a sensação de gozo3 por participar, ainda que de modo incipiente, deste debate tão importante para a democratização do processo penal brasileiro, que se quer de estrutura verdadeiramente acusatória.

2. O juiz das garantias no Projeto de Reforma do Código de Processo Penal

O projeto de reforma do CPP prevê, no artigo 14, capítulo II, título II - Da Investigação Criminal, livro I - Da Persecução Penal, a figura do juiz das garantias com competência para atuar, no controle da legalidade da investigação criminal e na salvaguarda dos direitos do investigado, invioláveis salvo por decisão judicial. De acordo com o projeto, apresentada a denúncia criminal pelo Ministério Público, cessa a competência do juiz das garantias, sendo que todas as medidas processuais posteriores competem ao juiz do processo, um juiz distinto daquele que atuou na investigação.

A proposta contida no projeto rompe com a tradição do direito processual brasileiro de fixação da competência com base na prevenção, conforme artigo 83 do CPP, em vigor desde 1941. O projeto de reforma prevê, ao contrário, a prevenção como fator de exclusão da competência. Assim, o juiz que atuar durante a investigação fica impedido de atuar no processo4. A adoção de tal instituto não se aplica aos crimes de menor potencial ofensivo5, já que, nesses casos, não se instaura investigação pré-processual.

A exposição de motivos do projeto de lei, feita pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto apresentado ao Senado Federal, esclarece que a proposta da instituição de um juiz de garantias pretende, como objetivo geral, consolidar o modelo processual acusatório, único compatível com um Estado Democrático. Especificamente, a proposta objetiva otimizar a atuação jurisdicional criminal, viabilizando maior especialização dos órgãos encarregados da matéria e melhor gerenciamento operacional, além de "manter o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação"6.

Note-se que o critério da exclusão da competência pela prevenção, nos termos contidos no projeto, afasta a jurisdição do juiz de primeiro grau que atuou na investigação, mas não dos magistrados de segundo grau que tenham decidido algum recurso interposto ainda na fase pré-processual. Como o fundamento da exclusão da competência pela prevenção está em manter o julgador equidistante do caso, havendo menor risco de contaminação de sua imparcialidade pelos elementos informativos da investigação, o mesmo critério de fixação e exclusão da competência por prevenção deve ser aplicado também aos tribunais de segunda instância7. Entretanto, não persiste a mesma necessidade em relação aos tribunais superiores, porque não têm competência constitucional para revisão da matéria probatória. Assim, seus ministros não têm a convicção, diretamente, contaminada pelos elementos da inquisição.

Segundo Nereu Giacomolli, a proposta do PL 156/09 se aproxima do giudice per le indagini pre-

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liminari do sistema italiano8. Mar-zia Ferraioli explica que, na Itália, a presença do giudice na indagini preliminari não é essencial: a investigação pode iniciar e se desenvolver mesmo sem intervenção do juiz, desde que não se configurem os requisitos para sua presença, ou seja, desde que não precisem ser praticados atos de intervenção sujeitos à autorização prévia do Poder Judiciário9.

A autora coloca essa característica como um diferencial do giudice per le indagini preliminari do giudice istruttore do sistema italiano anterior, o qual consistia, na generalidade dos casos, um passagio obbligato, desde a notícia do fato até o início da fase processual10. Segundo a doutrinadora italiana, havia uma ambiguidade no sistema anterior que não permanece no atual, uma vez que a fase dei dibat-timento voltava-se para as provas colhidas no juízo de instrução.

Ela explica que o giudice per le indagini preliminari não herdou as funções do giudice istruttore e isso é perceptível nos casos taxativamente previstos dell' incidente probatório, no qual o juiz da investigação preliminar segue a forma prevista para o processo em contraditório, quase que como um órgão delegado do juiz do processo11. Essa comparação permite verificar, além de tantas outras, a semelhança do instituto italiano com o previsto no artigo 14, VII, do PL 156/09, que prevê competência do juiz das garantias para decidir sobre a produção antecipada de provas.

Percebe-se, por outro lado, que as funções do juiz das garantias estão claramente definidas no projeto de reforma, ao passo que não estariam tão evidentes na legislação italiana em relação ao giudice per le indagni preliminari. Mesmo assim, ausente maior cla-reza na legislação italiana, lá não há dúvida de que o giudice per le indagni preliminari não deve ser nem deve se assemelhar ao juiz instrutor, como afirma Marzia Ferraioli12

O projeto de reforma brasileiro torna claro quais são as funções do juiz das garantias: o controle da legalidade da investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Essa função de controle da legalidade da investigação faz com que, no Brasil, exi-ja-se que toda investigação aberta seja comunicada ao juiz das garantias nos termos do artigo 14, IV, e não somente aquelas que requeiram restrição de garantias submetidas à prévia atuação judicial, diferindo, neste ponto, s.m.j, do código italiano, onde a investigação pode se desenvolver integralmente por procedimento meramente administrativo.

No entanto, em termos gerais, a proposta brasileira se assemelha ao modelo do giudice per le indagni preliminari italiano, sobretudo em razão do fato de que esse juiz não tem função de juiz instrutor, não podendo exercer atividades que cabem ao investigador como se dá com o juiz de instrução na Espanha. O juiz das garantias não pode atuar na colheita da prova nem determinar medidas de ofício. Entende-se que, se o fizer, estar-se-á diante de nulidade absoluta por violação do sistema acusatório (art. 4o).

Em que pese o projeto de reforma preveja a obrigatoriedade da participação do juiz na fase pré-processual, como se dá com ojuez instructor previsto na Ley de En-juiciamiento Criminal espanhola, como ocorria com o giudice istruttore do sistema italiano revogado e como operam os juízes de ins-trução francês e belga, o juiz das garantias proposto no Brasil tem funções muito distintas daqueles. É que no sistema espanhol e nos demais referidos a direção da investigação criminal fica a cargo da autoridade judicial, "a quem compete a colheita de todo o material probatório e indiciário acerca do fato delituoso"13. Nesses sistemas o juiz de instrução pode praticar todos os atos de investigação; é ele quem coordena as...

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