Uma análise constitucional do direito de ação no processo civil brasileiro

AutorMárcia Regina Pitta Lopes Aquino
CargoMestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina
Páginas183-201

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O presente artigo corresponde à síntese de dissertação de mestrado (UEL/2006), elaborada sob a orientação do professor Dr. Marcos Antônio Striquer Soares.Page 184

1 Introduçåo

A análise constitucional do direito de ação no processo civil brasileiro apresentada neste trabalho tem como ponto de partida a constituição. Não poderia ser diferente: a ênfase é constitucional. Porém, a referência à constituição remete a um outro objeto de estudo: o estado. E este, nas palavras de Pablo Lucas Verdú e Pablo Murillo de la Cueva (1994, p. 113), nasceu e permanece em crise.

Correlata ao desenvolvimento do estado houve sempre uma doutrina coerente que o identificava e explicava em cada fase de seu desenvolvimento. Assim foi a doutrina de Maquiavel, Hobbes e Jean Bodin para o estado moderno que, reagindo à crise política religiosa e socioeconômica daqueles tempos, afirmaram o poder supremo do Estado (VERDÚ; DE LA CUEVA, 1994, p. 114).

Com o constitucionalismo moderno 1 , o estado adquire nova identidade: a constituição limita e organiza o poder do Estado. A primeira forma de estado constitucional é o estado liberal que surge imediatamente após as duas revoluções da segunda metade do século XVIII (americana e francesa). Montesquieu - um de seus grandes teóricos - estrutura a fórmula da "separação de poderes" em que o juiz é apenas a "boca da lei" e o judiciário um poder nulo e invisível. 2

O estado social nasce no momento em que se busca "superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social". Tem preocupações voltadas menos para a liberdade do que para a justiça, como anseio e valor social superior (BONAVIDES, 2004b, p. 185). Todavia, também o estado social se viu diante de uma crise: a administração constante e ubíqua dos diversos setores da vida em sociedade, levada a cabo para cumprir o programa político que se oferecia como alternativa, termina custando um sacrifício abominável de prerrogativas dos indivíduos, antes garantidas, ainda que mínima e formalmente. (GUERRA FILHO, 2001, p. 80).Page 185

No Brasil, desde 1988, vive-se sob uma constituição que nasceu para superar o autoritarismo e o arbítrio. Uma constituição que fundou um estado democrático de direito e que pode, segundo alguns autores, ser entendido como a superação tanto do estado liberal como do estado social. Porém, a distância entre o que determina a constituição e o que vive a sociedade expõe a crise. 3

A abertura democrática torna oportuno o momento atual para formular novamente a pergunta que Lassale fez em 1862 - O que é a Constituição? - e para, a partir da resposta que se obtiver, buscar entender o direito de ação. É o que se buscará fazer neste trabalho, mas sem a pretensão de apontar solução para a crise instalada. Seria um passo longo demais para alguém de tão pouca estatura. O objetivo é o estudo, a discussão, num contexto de abertura e de possibilidades, e também, de crise não apenas do estado, mas também do Direito e da Ciência Jurídica.

2 Positivismo e jusnaturalismo

Diz Norberto Bobbio (1995, p. 15-24) que "toda a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre "direito positivo" e "direito natural". 4

A distinção conceitual entre ambos, afirma o autor, já se encontra no pensamento grego. O nascimento do positivismo jurídico ocorre quando não mais se considera direito positivo e direito natural no mesmo sentido, vale dizer, quando se reduz todo o direito ao direito positivo. Define-se, portanto, como positivismo jurídico a "doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo". Sua origem está na formação do Estado moderno quando este concentra em si todos os poderes, e, em primeiro lugar, o de criar o direito (BOBBIO, 1995, p. 25-6).

Todavia, a pergunta sobre o indisponível do direito, isto é, "saber se o homem pode dispor livremente do Direito ou se lhe são impostos limites na criação doPage 186 mesmo" mantém-se até os dias de hoje no centro das indagações filosóficas. Por muitos séculos acreditou-se que esse "indisponível" estivesse na natureza, fosse ele chamado de logos, idéia ou essência (KAUFMANN, 2004, p. 31-2).

Se o direito natural da Idade Média era teológico, na Modernidade é um direito secularizado que deveria existir mesmo que Deus não existisse: um direito natural iluminista e racional. Insistia-se na idéia do direito natural "absoluto, universal e supra-histórico, ou seja, vale acima do direito positivo estabelecido pelo homem, vale para todos os homens e vale para todos os tempos". A determinação do direito justo obtinha-se indagando sobre a natureza do homem e "retirando daí, por dedução lógica, os direitos e deveres naturais do homem". As concepções sobre a natureza do homem também variavam como em Rousseau e Hobbes. A teoria do contrato social desempenha, aí, importante papel (KAUFMANN, 2004, p. 37-8).

O jusnaturalismo moderno , isto é, a crença na "existência de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma emanada do Estado", foi o trunfo e combustível das revoluções liberais do século XVIII. Porém, ao longo do século XIX, com a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e com o êxito do movimento de codificação, o jusnaturalismo alcança seu apogeu e, paradoxalmente, inicia-se sua superação. Considerado metafísico e anticientífico, é empurrado para a margem da história (BARROSO, 2003, p. 289).

O século XIX situa-se, assim, sob o signo do positivismo jurídico. Sobre direito natural poucos falavam. No decurso desse mesmo século desenvolveu-se também "a metodologia positivista de Savigny, de acordo com a qual o juiz apenas tem de 'subsumir', isto é, articular duas grandezas objetivas, a lei e o caso, devendo ele próprio manter-se totalmente à margem de tal processo [...]." (KAUFMANN, 2004, p. 45).

O grande lastro metodológico do século XX foi o formalismo e o positivismo (CORDEIRO, 2002, p. xiii, xvi). No âmbito constitucional, os positivistas são os 'Mestres da preservação da juridicidade dos textos constitucionais'. A constituição do positivismo jurídico-estatal é nomeadamente formalista e fechada. Nela a norma se explica pelo seu conteúdo nominal, por sua rigidez, vazada por escrito, hermética em presença da realidade exterior (BONAVIDES, 2004a, p. 171).

Conforme Antonio Menezes Cordeiro (2002, p. xvi-xxii), várias são as críticas endereçadas ao positivismo e ao formalismo fundamentadas, quanto ao útlimo, na natureza histórico-cultural do Direito e na sua incapacidade perante a riqueza dos casos concretos. Em relação ao positivismo, as críticas referem-se: a sua insistência em negar lacunas e em não ter meios para lidar com conceitosPage 187 indeterminados; a sua inoperabilidade em situações de contradições de princípios; e, finalmente, a sua incapacidade de apontar soluções perante injustiças ou inconveniências graves no Direito vigente.

Tais críticas já podem demonstrar porque o positivismo e o formalismo jurídico sucumbiram juntamente com as vítimas do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, não só o positivismo - degenerado num puro positivismo legalista foi abatido - "também se abusou da idéia do direito natural, ao recusar aplicação a leis vigentes em nome dum direito natural étnico " (KAUFMANN, 2004, p. 45).

Após a Segunda Guerra Mundial, houve um renascimento do direito natural "menos por seus méritos intrínsecos, do que pela flagrante contradição da neutralidade axiológica do positivismo frente ao terrorismo do 3º Reich" (GUERRA FILHO, 2002, p. 110). Tal renascimento foi passageiro, dele restando apenas uma negação à possibilidade de decisões judiciais monstruosas.

Diz Arthur Kaufmann: "o que nos aflige é a limitação da arbitrariedade na feitura e aplicação da lei. Para tal não existe uma resposta satisfatória, enquanto se insistir na alternativa: ou direito natural ou positivismo, tertium non datur " (KAUFMANN, 2004, p. 49). 5

Na tentativa de superação deste dilema surgem diversas teorias que podem ser agrupadas sob o rótulo de "terceira via". Entre elas estão: a filosofia do direito de Gustav Radbruch, a hermenêutica jurídica, a teoria da argumentação jurídica, a teoria dos princípios gerais de direito e o CLS ( Critical Legal Studies ).

É possível afirmar, portanto, que também a Ciência jurídica passa por uma crise. Na complexidade da sociedade atual, conceitos como soberania popular, representação política, separação de poderes, direitos do homem, controle da constitucionalidade e estado de direito não têm sido capazes de contê-la. Os tribunais constitucionais, em muitas de suas decisões, asseguram a perpetuação de um sistema afastado da realidade social. Surgem, então, conceitos como o de constituição dirigente (Canotilho), que, porém, acabam por se mostrar insuficientes. É necessário, formular novas teorias e, assim, novos conceitos e nova prática política e jurídica que sejam capazes de conter a crise atual. (VERDÚ; DE LA CUEVA, 1994, p. 118-9) 6 .Page 188

No Brasil, a ditadura militar e seu arsenal de violência constituiu grave empecilho para uma "profusão de idéias". Diante da redemocratização, o debate é possível e necessário. Entre os temas a serem revistos, situam-se o papel desempenhado pelo Judiciário e o entendimento que possa fazer a respeito do direito de ação no estado democrático de direito.

3 Jurisdiçåo

É tradicional a referência às doutrinas de Chiovenda e Carnelutti a respeito da jurisdição. Ensina o primeiro (CHIOVENDA, 2002, v. 1, p. 17): "a lei em sentido lato (ou direito objetivo) é a manifestação da vontade coletiva geral, destinada a regular a atividade dos cidadãos ou dos órgãos públicos". O juiz afirma a preexistência da vontade da lei e, portanto, a...

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