Pacto de São José da Costa Rica: análise da prisão civil do depositário infiel proveniente de execução trabalhista

AutorRubens Fernando Claner dos Santos Júnior
CargoJuiz do Trabalho do TRT da 4ª Região
Páginas231-246

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1. Introdução

O presente estudo visa a abordar o instituto da prisão civil no sistema jurídico brasileiro, sobretudo a partir da análise do Pacto de São José da Costa Rica, que foi ratificado pelo Brasil e incorporado ao nosso ordenamento jurídico brasileiro por meio de Decreto-Legislativo.

A matéria ganha importância nestes últimos anos em razão da modificação de entendimento pelo Supremo Tribunal Federal, ao analisar a prisão civil do depositário infiel nas hipóteses de alienação fiduciária.

Desse modo, buscaremos analisar o instituto nas execuções trabalhistas, na hipótese de configuração do depositário infiel. Com isso, será feito o exame dos posicionamentos estabelecidos pelos Tribunais, em especial pelo STF, bem como do instituto da prisão civil, desde os primórdios até o seu reconhecimento na Constituição Federal de 1988.

Necessariamente teremos que ingressar no estudo da natureza jurídica do crédito trabalhista e também nas espécies de depósitos, a fim de estabelecer as suas respectivas diferenças e finalidades. Esta abordagem ganha relevo porque atualmente se impõe a necessidade de buscarmos mecanismos eficientes e eficazes ao processo, quando chamado o Estado a tutelar os direitos violados.

Desse modo, pretenderemos demonstrar a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel — devedor de alimentos oriundos de uma execução trabalhista. Para isto, teremos que examinar os verdadeiros objetivos, premissas e valores estabelecidos no Pacto de São José da Costa Rica, constatando que tais premissas são também aquelas estabelecidas na própria Constituição Federal, bem como nos fundamentos do Direito do Trabalho.

Assim, a partir da devida interpretação sistemática do Pacto de São José da Costa Rica, poderemos sustentar que este Tratado Inter-nacional de Direitos Humanos não tem como condão proteger o devedor trabalhista — quando este assume o encargo de depositário fiel do bem penhorado, cujo bem servirá para efetividade das decisões judiciais, visando a alcançar tutela efetiva ao trabalhador, quando este trabalhador não teve o pagamento dos seus respectivos salários em razão do trabalho prestado.

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2. A prisão civil no sistema jurídico brasileiro Breve histórico

O ordenamento jurídico brasileiro estabelece regra geral proibitiva da prisão civil por dívida. Antes de chegarmos ao sistema atualmente vigente faz-se mister uma análise do passado, das evoluções e involuções acerca deste instituto, nos diversos ordenamentos que se seguiram, para melhor compreensão deste instrumento coercitivo.

No regime imperial o processo civil estava regulado pelas Ordenações Filipinas, não haven-do previsão acerca da prisão civil por dívida. Esta sistemática perdurou durante este período, em que esteve em vigor a Constituição Federal de 1824, que não dispunha a respeito deste instituto. A primeira Constituição da República, de 1891, também não disciplinou a matéria, mas conferiu aos Estados competência para legislarem sobre legislação processual. A partir deste momento, o regulamento n. 737 de 1850 previa a possibilidade de prisão do depositário, caso não restituísse o bem depositado ou o equivalente em dinheiro.

Em 1917, a partir da vigência do respectivo Código Civil, foi admitida expressamente a prisão civil, tanto nos casos de depósito voluntário como também de depósito necessário (art. 1.287). A Constituição Federal de 1934 proibia a prisão por dívidas, multas e custas. Então, com a vigência simultânea do Código Civil e da Constituição Federal de 1934, passamos a ter, em princípio, institutos conflitantes sobre o mesmo tema, dispondo o Código Civil a possibilidade da prisão e a Constituição Federal a vedação da prisão por dívida. Interessante, e oportuna para o atual momento, a decisão do Supremo Tribunal Federal na época, quando entendeu que a prisão do depositário não poderia ser considerada prisão por dívida, sendo apenas um meio compulsório de restituição do depósito. Manteve-se assim a possibilidade de prisão prevista no Código Civil, mesmo com a vedação da prisão por dívida trazida na Constituição, já que aquela modalidade de prisão não era considerada prisão por dívida.

A Constituição Federal de 1937 dispôs em sentido contrário à Constituição Federal de 1934, não vindo a proibir a prisão por dívida, autorizando que a matéria fosse disciplinada por legislação ordinária. As Constituições de 1946 e de 1967, esta com a Emenda n. 1/69, retornaram à sistemática anterior, vindo a possibilitar a prisão do depositário infiel e do devedor de alimentos, na forma da lei.2

3. A prisão civil e a Constituição Federal de 1988

Dispõe o inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”

A Constituição Federal de 1988 manteve o texto das Constituições anteriores, vindo a suprimir apenas a expressão “na forma da lei”, que justamente visava a remeter para a legislação infraconstitucional a regulamentação do seu conteúdo e o regramento procedimental desta medida coercitiva.

Conclui-se, desde já, que o constituinte originário de 1988 não remeteu para o legislador infraconstitucional a regulamentação da matéria, optando por disciplinar de forma clara e precisa a vedação da prisão civil por dívidas e autorizando esta prisão em duas situações excepcionais, nos casos do depositário infiel e do devedor de alimentos.

A legislação ordinária que temos a respeito, atualmente, não vem a regulamentar a matéria, cuja regulamentação é desnecessária e até mesmo inconstitucional, já que foi o constituinte originário quem disciplinou as hipóteses de vedação e de cabimento da prisão civil. A legislação ordinária existente apenas traz regras

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procedimentais, não a respeito das hipóteses de cabimento e de vedação, mas apenas relativas ao cumprimento do preceito constitucional, como o procedimento para se chegar nesta sanção, o regime da pena, a sanção, dentre outros aspectos procedimentais.

4. O Pacto de São José da Costa
Rica e a prisão civil

Dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como o Pacto de São José da Costa Rica, em seu art. 7º, 7:

“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de auto-ridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”

O Pacto de São José da Costa Rica foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, por meio do Decreto-legislativo n. 27, de 19923:

“Art. 1º É aprovado o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José) celebrado em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, por ocasião da Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos.”

Com a incorporação do Pacto de São José ao sistema jurídico brasileiro, passou-se a discutir os efeitos reflexos decorrentes desta incorporação. Em um primeiro momento, por meio da interpretação conjunta do texto constitucional e do texto contido no pacto, a jurisprudência das Cortes superiores manteve seus posicionamentos sobre a prisão civil, cujo entendimento continuou pacífico por alguns anos. Entretanto, nos últimos anos, a jurisprudência, principalmente do Supremo Tribunal Federal, modificou o seu posicionamento, passando a dar outra interpretação à matéria, a partir da recepção do Tratado em voga.4Sem sombra de dúvidas, a recepção do Tratado Internacional pelo Brasil representa uma evolução em matéria de direitos humanos pelo nosso ordenamento, na medida em que seu texto busca consagrar instrumentos e medidas melhores e mais eficazes de defesa dos direitos humanos. Passa a ser tarefa da doutrina e da jurisprudência uma adequada interpretação sistemática do pacto, não apenas das normas em si dispostas, mas dos valores e objetivos estabelecidos neste Tratado, o que enseja uma análise com um pouco mais de profundidade, inclusive da sua exposição de motivos.5

5. Os valores e objetivos estabelecidos no Pacto de São José da Costa Rica

O Pacto de São José da Costa Rica tem como objetivo maior estabelecer mecanismos de proteção do cidadão mais simples, que, via de regra, não tem maiores condições de buscar e alcançar sozinho e de maneira eficiente seus direitos e suas garantias. Tem como objetivo estabelecer regras claras proibitivas de abusos e excessos, inclusive por parte do Estado, visando a uma progressividade social dos povos. Assim como os demais Tratados de Direitos Humanos, o pacto tem como ideia central a proteção do cidadão, do homem, de abusos ou arbitrariedades, buscando estabelecer regras de convívio harmonioso em sociedades democráticas e sociais.

Para uma adequada compreensão das normas estabelecidas no pacto é necessária a identificação dos seus objetivos, pois a compreensão dessas metas e diretrizes é essencial para a posterior compreensão do restante dos dispositivos

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