A alteridade enquanto construção da responsabilidade: a substituição no rosto do outro

AutorRafael Soares Duarte de Moura
Páginas105-164
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Em tudo o que foi dissertado até o presente momento, percebe-se todo
um campo de visão sobre a questão do homem e a concepção da sua
existência face aos outros. Constatada a crise de uma concepção humanista
e, mesmo, anti-humanista sobre o existir do humano, diante das tentativas
de reduzi-lo tão somente à visão estrutural oriunda da razão, como se o
homem fosse o fruto do pensar cartesiano, procurou-se apontar o caminho
que conduz o Eu para o externo de si.
Não se pretende construir uma noção de interioridade plasmada
apenas no externo de si, até porque isso implicaria na desconstrução do Eu,
ou do outro mesmo, na medida em que a identidade de cada qual seria dada
apenas pelo externo a si. Tal fato não deixaria de ser uma forma de
nadificação e totalitarismo da ingerência do Ego que se expande para
englobar e enquadrar o outro à sua concepção de existência. Tem-se, assim,
a formação da consciência “fora de si na relação com o outro humano
emerge como lugar privilegiado da metafísica ou do Bem” (Ribeiro Júnior,
2008, p. 279), mas que não prescinde do papel ativo do Eu que se relaciona,
pelo contrário.
Os Eus serão sempre solitários, na medida em que não são
constituídos por mais de uma natureza identitária que caracteriza a sua
consciência de si e sua identidade face ao outro, ou seja, o Eu não
compreende dentro de si outros Eus. Não há uma pluriconstituição do Eu,
como se houvesse várias existências no interior da identidade única que
representa o Ser de cada humano. A singularidade do Eu se atrela à
responsabilidade decorrente dela. Apenas o Eu pode decidir o que fazer ou
não fazer. Todas as consequências do seu portar decorrem do indivíduo
que, na solidão de si, opina na vida.
Lévinas, de novo, fala deste transe da solidão, deste estar só consigo mesmo quando não se
quer, do maravilhamento que há na experiência individual de viver. E contá-la e fazer a
narrativa dos dias é o máximo que se pode esperar com uma abertura ao intérprete que retoma
a diversidade do caleidoscópio. Podem-se misturar as imagens do outro como parece melhor.
Pode-se errar e pode-se acertar. Nada disto, porém, afeta o fato básico da dimensão solitária de
cada um [...]. (Lopes, 2012, p. 5).
O que o pensamento levinasiano propõe é, justamente, uma nova
forma de construção de si e do outro por meio do relacionamento ético
advindo da manifestação do rosto. Eu e outro se constroem nesse
relacionar-se, mas essa construção não apresenta como resultante o Eu
deixar de ser Eu e o outro deixar de ser outro. O que se verifica é
exatamente que a “exterioridade do próximo faz emergir a interioridade do
eu” (Melo, 2003, p. 57).
Dessa forma, a manifestação do outro desperta a consciencialidade do
Eu, que passa a refletir sobre o relacionar-se, não apenas como forma de
exterioridade social, mas como elemento essencial para a formação da
identidade interior. Essa, com a intriga ética, será constituída por meio do
Eu que, diante do magnetismo do ser-para-o-outro, poderá ou não fazer
desse encontro uma oportunidade de crescimento e enriquecimento
mútuos. Não se pode discorrer sobre a esperada reflexão da justiça,
proveniente da responsabilidade na substituição, sem aclarar a dimensão do
Eu subjetividade que se emancipa do que o pensamento levinasiano designa
il y a.
2.1 A solidão do Il y a interrompida: a hipóstase como emancipação
do existente conceitual ao existir na dinâmica da vida
O Eu deve sair do estado de hibernação, do estado de sonolência, para
que, emancipado, seja cônscio de si e, portanto, possa existir em plenitude.
No il y a o “eu é contaminado pela irremissibilidade, pela impessoalidade e é
submergido na escuridão do anulamento do ser” (Melo, 2003, p. 57).
Trata-se de um retorno ao indeterminado, à escuridão, à noite que paira no fenômeno em si
mesmo. Il y a é o mais completo anonimato essencial, é a experiência da escuridão que preenche
todos os espaços e invade todas as possibilidades de ser. (Pimenta, 2012, p. 66).
Dessa forma, o despertar é garantia de que, por meio da
conscientização de ser, o Eu na sua subjetividade se assenhora do ser
(Melo, 2003, p. 57). Esse assenhoramento se efetiva na medida em que o Eu
passa a dominar a própria existência por meio da consciência. Ocorre que,
por mais que essa emancipação do Eu reflita um despertar de si,
proclamando ao mundo a sua existência, “o seu poder sobre a existência,
ação que possibilita a obra da identificação, é o mesmo que o faz sujeito
solitário, separado do outro e do mundo e das coisas que o revestem”
(Melo, 2003, p. 58).
Contradição à primeira vista, mas que não permanecerá ao se pensar
que é consequência do ato de assenhoramento esse voltar-se para si, numa
reflexividade que conduz a uma estreita abertura ao externo, que garante a
liberdade o Eu, confiante da sua própria existência, centrar em si a
necessária observação reflexiva para a autocompreensão. Essa fase é
essencial para que haja um amadurecimento que será interrompido em
nova fase, quando da manifestação do rosto do outro e o estabelecimento
da intriga ética.
Esse fenômeno interno do Eu, chamado pelo pensamento levinasiano
de hipóstase, rompe com o Il y a.[1] A hipóstase é o meio pelo qual o eu
assume essa forma auto-reflexiva e autodeterminante” (Hutchens, 2007, p.
68). Ocorre que essa autodeterminação, compreendida como possibilidade
volitiva de se conduzir da forma como se deseja, pode apresentar um perigo
para o ser.
O ser, seguido e obcecado por si mesmo, representa, igualmente, a
busca pela plena autodeterminação. Nesse sentido, observa-se a postura de
um Eu que busca, nessa fuga ensimesmada, a verdade manifestada pelo
mundo. Porém, logo que possuidor da mesma, o Eu retorna às muralhas de
si, munido daquilo que almejava adquirir. Seria de fato uma busca pelo
saciar-se do conhecimento por meio de um voluntarismo extremado, o qual
descartaria o que fosse à contramão do desejo desse Eu.
Nesse sentido, o Eu, para o pensamento levinasiano, na arrogância de
se autodeterminar, pontificando sua trajetória de existente da forma como
ele (o Eu) deseja, se dá por meio deste orgulho autossuficiente a:
[...] violar sua existência e dominar a realidade [...] o eu luta para se transformar, para ser
mais do que é, em virtude de uma intenção violentamente ativa de buscar a verdade na fuga de
si mesmo para entrar no mundo. Quando volta com as suas descobertas, ele fecha a porta,
trancando lá fora todas as formas de diferença e transcendência. Ele se relaciona com a
realidade apoderando-se ou apropriando-se dela. (Hutchens, 2007, p. 67).
Percebe-se a tirania do Eu na medida em que ele pretensamente se
apresenta como o atribuidor do sentido ao mundo. Por meio desta postura,
tem-se como consequência a estruturação de uma sociedade, como falada
no primeiro capítulo, pautada pela manipulação tecnológica e política, no
sentido de se instrumentalizar os campos do saber, não mais, apenas, pela
dinâmica estruturalista e lógico-racional, mas também pelo voluntarismo

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