Agrarian question and Latin America: brief contributions to an urgent debate/Questao agraria e America Latina: breves aportes para um debate urgente.

AutorTraspadini, Roberta
CargoReport

Introducao

Na producao social de sua existencia, os homens estabelecem determinadas relacoes necessarias e independentes de sua vontade, relacoes de producao que correspondem a um determinado estagio evolutivo de suas forcas produtivas materiais. A totalidade dessas relacoes de producao constitui a estrutura economica da sociedade a base real sobre a qual se alca um edificio juridico e politico, e a qual correspondem determinadas formas de consciencia social. O modo de producao da vida material determina o processo social, politico e intelectual da vida em geral. Nao e a consciencia dos homens que determina seu ser, e sua existencia social o que determina sua consciencia. Em um estagio determinado de seu desenvolvimento, as forcas produtivas materiais da sociedade entram em contradicao com as relacoes existentes ou [...] com as relacoes de producao dentro das quais estavam se movendo ate o momento. Ao considerar esta classe de inversoes, sempre e imprescindivel distinguir entre a inversao material das condicoes economicas de producao, fielmente comprovaveis ao ponto de vista das ciencias naturais, e as formas juridicas, politicas, religiosas, artisticas e filosoficas, em suma, ideologicas, dentro das quais os homens cobram consciencia deste conflito e o solucionam. (MARX, Contribuicao a critica da economia politica, 2003, p. 5)

A compreensao que os povos originarios do nosso continente tinham de territorio e producao de vida, dista muito da concepcao mercantil referente a logica societaria capitalista. Enquanto no primeiro grupo a centralidade estava na conformacao de um tipo de (cons)ciencia centrada na relacao sol-lua-terra-pessoas, no segundo, sob a tirania do tempo da maquina, sobressaem todas as demais formas de compreensao sobre vida, relacoes sociais, historia.

E da conformacao do que havia no continente como processo historico e milenar de producao de vida que se fundou o violento mecanismo de invasao colonial cujo significado segue presente em nossos tempos. A questao agraria (1), entendida a partir da funcao que cumpre a entao denominada pela politica de guerra da invasao America Latina, cumpre uma relacao dialogica entre passado-presente dos sujeitos no territorio. Por um lado, tem no passado pre-colombiano (2) narrativas historicas hoje dificeis de serem acessadas e compreendidas--tamanha a complexa gama de destruicoes envolvidas--, mas ainda presentes a partir da existencia das raizes maias, incas, astecas, quechuas, mapuches, guaranis, tupinambas, no nosso presente. Por outro lado, mas associado diretamente ao primeiro, expoe o processo continuo de drenagem de recursos naturais e minerais (3) de dentro para fora e a necessidade de manutencao, no continente, de uma (des)ordem no plano da existencia humana a partir da conducao de um trabalho que antes escravo, tornou-se livre sem as garantias formais da ideia de liberdade projetada como ideologia sem concrecao pelo processo de internacionalizacao da concepcao mercantil-capitalista.

A questao agraria (4) demarca a centralidade da historia entendida como disputas, contradicoes, complexas relacoes sociais de demarcacao sobre o que se entende por vida, terra, ser social e sociabilidade para cada um dos grupos que, ante a guerra, exercem suas distintas formas de poder ao longo da historia. A partir do carater historico material, a questao agraria demarca as relacoes sociais de poder-contrapoder e a conformacao das regras politico-juridicas-morais a partir da perspectiva dominante sobre o exercicio concreto do poder sobre todos. Explicitada a partir de uma condicionalidade historica, a relacao entre os seres sociais, os demais seres vivos e a natureza, a questao agraria ganha uma dimensao que nao comeca no capitalismo mas ganha neste novas formas de um conteudo centrado na propriedade privada da terra. E portanto da condicionalidade da liberdade desconectada a posse, uso, possibilidades de sobrevivencia para alem da compra-venda.

Delimitar o carater historico da questao agraria para alem da era do capital, significa colocar em evidencia como cada sociedade define seu modo de produzir vida a partir dos tipos de relacoes sociais estabelecidos e dos diferentes processos de estagio e compreensao da tecnica e da tecnologia. Ou seja, a terra para muitos povos, ontem e hoje, nao e entendida--como desenhou ao longo dos ultimos quinhentos anos as ideias dominantes hegemonicas com uma ideia de desenvolvimento concebida na Europa e tomada na America Latina--como meio de producao, instrumento de producao, reserva de valor, guerra de dominios cada vez mais privados. A terra, elementos substantivo de producao e reproducao social, tambem era/e entendida como espaco comum, de bem viver. A terra concebida como territorio comum e cheio de vidas independente da acao humana sobre ela. Processo de cosmovisao que, no espaco-tempo, permitia que os sujeitos formassem suas linguagens, suas regras, suas dimensoes politicas, a partir de outra concepcao de espaco-tempo.

Mas bastou ganhar a sangrenta guerra e denominar a partir das concepcoes vitoriosas o territorio--America Latina--e os sujeitos--barbaros--para que a diversidade de compreensao sobre o significado terra, fosse restringido a direito, propriedade, instrumento de poucos individuos sobre muitas vidas. Assim, a compreensao enraizada em uma ontologia ser-solar, e violenta e cruelmente substituida por uma concepcao de individuo-terra, mercantis (5).

A questao agraria nos revela o fundamento das disputas, das guerras e das historicas formas-conteudos de ocupacao territorial pelos sujeitos que geram vida, e muita morte, ao longo da historia. Dar centralidade a questao agraria e demarcar o momento na historia em que a concepcao originaria foi, atraves de multiplas guerras por diversos territorios, suplantada, massacrada, aniquilada pela concepcao mercantil em transicao na Europa (6).

Em outras palavras, pautar a questao agraria a partir da America Latina significa tres coisas: 1. Reconhecer o desconhecimento historico sobre o que havia antes e que foi soterrado, destruido, saqueado, violentado pela condicao de invasao colonial do seculo XVI; 2. Explicitar as historias de resistencias presentes ao longo dos ultimos quinhentos anos que nos remetem a um passado ainda vivo na concepcao de territorio, vida e sociabilidade dos povos originarios e demais grupos que, tambem saqueados, violentados, violados, foram trazidos para o continente em condicoes (des)humanas ou de um tipo de humanidade questionavel em seus principios basilares. Foi assim com os povos originarios da Africa e com os trabalhadores expulsos e jogados em uma condicao de miseria e criminalizacao como os pobres da Europa; 3. Entender a centralidade da terra para a acumulacao capitalista, dado que se transformou na forma-conteudo dominante mundial a partir do seculo XIX.

Nesse sentido, a pergunta principal deste texto e a seguinte: Se America Latina e uma construcao territorial demarcada pela invasao colonial no seculo XVI, qual a funcao da questao agraria a partir das logicas inerentes a dita dinamica mercantil ao longo de cinco seculos?

1. Questao agraria: Abya Yala (7) versus America Latina

Marx, em O Capital (2013) (8), apos apresentar os elementos substantivos de dinamica de producao da mercadoria na sociedade capitalista, revela, nos capitulos XXI, XIV e XXV, a relacao indissociavel entre acumulacao primitiva-colonizacao-acumulacao de capital. E explicita, portanto, ainda no livro 1 em que esta tratando do tema da producao de valor, mostra a relacao indissociavel entre terra-trabalho-violacoes do direito a vida, a partir da premissa da logica da producao material de riqueza capitalista. Nesse sentido, nesses capitulos encontramos um processo explicativo do marco em que Pachamama (mae terra) na significacao dos incas, tekoha (modo de ser) (9) na concepcao guarani e abya yala na denominacao dos kuna sao substituidos, a ferro e a fogo, por uma violenta construcao social como America Latina. O que quer dizer que, o que era um territorio diverso na producao de vida, transformou-se em territorio privado de alguns grupos em guerras de dominios politicos territoriais.

Abya Yala e suas diferentes concepcoes de territorio, vida, sociabilidade, nao descoberta por acaso, mas pela intencionalidade de disputas comerciais do ocidente com o oriente, portanto, descoberta-invadida-destruida em sua alteridade, pelas guerras comerciais, tornou-se America Latina por um ato de violencia e guerra. E como tal, deixou de ser muita diversidade para transformar-se em mercadoria propriedade fundiaria de alguem. A acumulacao primitiva de capital, definida por Marx (2013), como a estrutura, base fundante, do processo de acumulacao capitalista, narrava portanto a funcao social que America Latina teria na producao ditada de fora, para consolidar, dentro, um poder ate entao inexiste nas condicoes que se deram (10): propriedade privada de reis, trabalhos escravos e/ou livres para extracao de mercadorias valiosas na guerra produzida do lado de la do Atlantico. E a colonizacao, demarca o principio da critica da economia politica da producao capitalista de riqueza, baseada na acumulacao...

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