Agência e representação comercial: a necessidade de harmonização da disciplina jurídica

AutorCarlos Alberto Hauer de Oliveira
Páginas106-120

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1. Introdução

Várias são as questões polémicas que resultaram da vigência do Código Civil de 2002 e que ainda não foram sanadas. Uma delas é a que decorre do disciplinarnento, a partir do art. 710 do Código Civil, do contrato de agência, figura que inexistia no âmbito do Código de 1916.

A maior polémica não resulta do re-gramento estabelecido pelo novo Código em si, mas sim do fato de já existir há quarenta anos um outro contrato típico bastante semelhante e detalhadamente regulamentado: a representação comercial, disciplinada pela Lei 4.886/1965, na redação conferida pela Lei 8.420/1992.

É que uma leitura dos dispositivos que definem as diferentes atividades abre ensanchas a dúvidas: trata-se da mesma figura contratual? Se positiva a resposta, como harmonizar os diferentes regimes jurídicos? Na hipótese negativa, qual critério deverá ser utilizado para divisar um contrato do outro?

Reside a dificuldade nalmensa similitude entre os conceitos utilizados em ambas as figuras, até porque o núcleo das ativida-des que lhe são inerentes gravita em torno da mesma ideia: a mediação para realização de negócios, no exercício de uma dada atividade económica.

O fato é que o art. 1- da Lei 4.886/ 1965 assim define a representação comercial: "exerce a representação comercial autónoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios".

O art. 710 do Código Civil, por sua vez, registra que "pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promovem à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinadas.

A proximidade entre as duas/figuras, como se deflui, é evidente. Aliás, convém frisar que, pelo menos até o advento do novo Código Civil, a expressão "agência" era tida como sinónima de "representação

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comerciar", sendo esta a posição dos dou-trinadores clássicos,1 valendo destacar que muitos ainda entendem desta forma, conforme será adiante demonstrado.

Veja-se que tamanha é a proximidade entre as figuras que, no conceito legal de representação comercial, verifica-se a presença do verbo agenciar, flexionado no gerúndio, o que serve para confundir ainda mais a situação.

Como a questão é bastante recente, ainda não houve tempo para que ajuris-, prudência trouxesse luz à situação. A doutrina, por sua vez, está muito distante de apontar para um caminho seguro, porquanto diametralmente opostas são as soluções que já foram apresentadas ao problema, que, mais adiante serão devidamente expostas.

Nó âmbito da doutrina, aparentemente só há uma unanimidade: a opinião no sentido de que o Código Civil não revogou ou derrogou a Lei 4.886, na medida em que o seu art. 721 foi expresso ao ressalvar a aplicação da lei especial, que, no caso, é justamente a Lei 4.886/1965, parcialmente alterada pela Lei 8.420/1992. Isso, no entanto, em nada auxilia para simplificar o problema. Ao contrário, serve para majorá-lo ainda mais, pois impõe a necessidade de harmonizar dois conjuntos de regras que, além de conflitantes, ostentam caráter distinto: a Lei 4.886 encerra regras imposi-tivas, de ordem pública, ao passo que os preceitos do Código Civil que tratam o tema têm natureza eminentemente dispositiva, na medida em que no mais das vezes somente têm aplicação quando o ajuste entre as partes não estabelecer de modo diverso."

É neste cenário que se situa o propósito deste artigo, cuja pretensão è expor as posições que até então foram apresentadas, para, ao final, propor um novo critério para distinguir o contrato de agência do de representação comercial, com a conclusão de que se tratam de dois contratos distintos, regidos por normas de caráter bastante diferentes.

2. A especialidade da representação comercial

O contrato de representação comercial, embora seja um dos mais utilizados no meio empresarial, e bastante diferente dos demais contratos que até então se classificavam como mercantis. Isso porque rege-se por lei que encerra preceitos de ordem pública, o que não é muito usual no âmbito do contratos que são firmados por exercentes de atividade económica.

Em geral, os contratos que integram a seara do direito de empresa costumam reservar amplo espaço para a autonomia da vontade das partes. Mesmo contratos típicos, no mais das vezes, encontram na lei apenas a definição da moldura básica da figura contratual, sem que haja necessariamente o detalhamento das posturas que nele deverão ser adotadas.

Exemplo típico disso é o contrato de franquia empresarial; regido pela Lei 8.955/ 1994. Referida lei, em síntese, ocupa-se ern criar mecanismo para garantir a transparência contratual, apresentando uma longa lista dos aspectos que deverão ser definidos na circular de oferta de franquia e no contrato correspondente. Mas a lei - felizmente, aliás - não estabelece o conteúdo obrigatório dos direitos e deveres das partes; apenas determina que deve haver a definição em torno dos aspectos mínimos que elenca.

Veja-se que a lei que regulamenta a franquia determina que deverá constar da circular de oferta de franquia, por exemplo e em relação ao território, "se é garantida ao franqueado exclusividade ou preferência sobre determinado território e, caso positivo, em que condições o faz". O que é

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muito diferente de a própria lei garantir a uma das partes a exclusividade em uma região ou a preferência para a instalação de novas unidades. Obriga as partes, assim, a regular um determinado assunto, mas não impõe como; elas é que deverão definir.

Na maioria dos contratos comerciais, com efeito, prevalece a ideia de que as partes são livres para, observados os postulados básicos do direito das obrigações, estabelecer suas regras da forma que melhor lhes aprouver, garantindo o espaço para a autonomia da vontade.

Muito diferente é a situação quando a atividade empresarial envolve a representação comercial. A Lei 4.886, em verdade, vai muito além de indicar os aspectos que devem necessariamente constar do contrato de representação comercial (art. 27), na medida em que garante direitos mínimos ao representante. É o caso, por exemplo, da alínea "1" do art. 27, que prevê a obrigatoriedade de constar do instrumento contratual a indenização pelo rompimento do ajuste sem justa causa, ao mesmo tempo em que prevê que a indenização "não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação".

O fato é que a Lei 4.886 estabelece uma série de regras impositivas que, por isso mesmo, não podem ser afastadas pela vontade das partes. Convém pôr em realce algumas delas:

(i) o prazo só pode ser determinado no primeiro ciclo contratual, de modo que não é lícita a sucessão de contratos com prazo determinado, salvo se houver um hiato de pelo menos seis meses entre um e outro-art. 27, §§ 2-c 3-;

(ii) a base de cálculo das comissões deve necessariamente ser o "valor total das mercadorias" (art. 32, § 4a), o que restringe a possibilidade de as partes preverem a melhor sistemática para ajusta remuneração, impedindo, p.ex., que se deduzam da base de cálculo despesas determinadas, tais como alguns tributos, frete, embalagem, mesmo que haja suficiente justificativa económica para tal;

(iii) vedação de alterações, ainda que consensuais, que impliquem na diminuição da média dos resultados auferidos pelo representante nos seis meses anteriores (art. 32, § 7a);

(iv) a impossibilidade de transferir ao representante comercial o risco relacionado à inadimplência do comprador - a conhecida cláusula dei credere, hoje vedada pelo art. 43; dentre outras.

Assim é porque a lei que rege a representação comercial teve um propósito claro e inequívoco: o de proteger a categoria dos representantes comerciais, que, até então, eram considerados "párias de nossa organização económica e social", nas palavras de Rubens Requião.2 Referido autor noticia que a lei em questão teve origem em reivindicação classista de 1949, aprovada por ocasião da II Conferência Nacional das Classes Produtoras, ocorrida na estância mineira de Araxá. O projeto de lei que daí resultou foi finalmente aprovado pela Câmara dos Deputados em 1965, mas foi inteiramente vetado pelo Presidente Castelo Branco, sob a justificativa de que o projeto aproximava em demasia o contrato de representação comercial ao contrato de trabalho dos vendedores, viajantes e pracistas. Ao vetar tal projeto de lei, determinou o Presidente que o Ministério da Indústria e do Comércio avaliasse o assunto e, com urgência, encaminhasse novo projeto ao Congresso, o que acabou por ocorrer no mesmo ano de 1965, sendo aprovado, às pressas, o projeto que resultou na Lei 4.886.

Por outro lado, é certo que a Lei 4.886 buscou inspiração em regras do direito do trabalho, em especial a indenização pela despedida sem justa causa e o pré-aviso. Frise-se bem: não que o representante comercial autónomo tenha a proteção do direito do trabalho; mas a lei especial, para

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protegê-lo, abeberou-se da mesma fonte que empolgou o disciplinamento da relação trabalhista.

Em consequência, para garantir a pro-teção, foi preciso dotar a lei de caráter cogente, impositivo, típico das leis que ostentam caráter social. Aliás, é conveniente frisar que o Supremo Tribunal Federal, em julgado de 1975, expressamente ressaltou o "caráter...

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