Administrativo e constitucional

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É PERMITIDA A IMPOSIÇÃO DE ASTREINTES A ENTE PÚBLICO PARA COMPELI-LO A FORNECER MEDICAMENTO A PESSOA DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS

Superior Tribunal de Justiça

Recurso Especial n. 1.474.665/RS Órgão Julgador: 1a. Seção

Fonte: DJ, 22.06.2017

Relator: Ministro Benedito Gonçalves

EMENTA

Processual civil. Recurso especial representativo de controvérsia. Art. 543-C do CPC/1973. Ação ordinária de obrigação de fazer. Fornecimento de medicamento para o tra-

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tamento de moléstia. Imposição de multa diária (astreintes) como meio de compelir o devedor a adimplir a obrigação. Fazenda pública. Possibilidade. Interpretação do conteúdo normativo inserto no § 5º do art. 461 do CPC/1973. Direito à saúde e à vida. 1. Para os fins de aplica-ção do art. 543-C do CPC/1973, é mister delimitar o âmbito da tese a ser sufragada neste recurso especial representativo de controvérsia: possibilidade de imposição de multa diária (astreintes) a ente público, para compeli-lo a fornecer medicamento à pessoa desprovida de recursos ? -nanceiros.

  1. A função das astreintes é justamente no sentido de superar a recalcitrância do devedor em cumprir a obrigação de fazer ou de não fazer que lhe foi imposta, incidindo esse ônus a partir da ciência do obrigado e da sua negativa de adimplir a obrigação voluntariamente. 3. A particularidade de impor obrigação de fazer ou de não fazer à Fazenda Pública não ostenta a propriedade de mitigar, em caso de descumprimento, a sanção de pagar multa diária, conforme prescreve o § 5º do art. 461 do CPC/1973. E, em se tratando do direito à saúde, com maior razão deve ser aplicado, em desfavor do ente público devedor, o preceito cominatório, sob pena de ser subvertida garantia fundamental. Em outras palavras, é o direito-meio que assegura o bem maior: a vida. Precedentes: AgRg no AREsp 283.130/MS, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 8/4/2014; REsp 1.062.564/RS, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 23/10/2008; REsp 1.062.564/RS, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 23/10/2008; REsp 1.063.902/SC, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ de 1/9/2008; e AgRg no REsp 963.416/RS, Relatora Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ de 11/6/2008. 4. À luz do § 5º do art. 461 do CPC/1973, a recalcitrância do devedor permite ao juiz que, diante do caso concreto, adote qualquer medida que se revele necessária à satisfação do bem da vida almejado pelo jurisdicionado. Trata-se do "poder geral de efetivação", concedido ao juiz para dotar de efetividade as suas decisões. 5. A eventual exorbitância na fixação do valor das astreintes aciona mecanismo de proteção ao devedor: como a cominação de multa para o cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer tão somente constitui método de coerção, obviamente não faz coisa julgada material, e pode, a requerimento da parte ou ex officio pelo magistrado, ser reduzida ou até mesmo suprimida, nesta última hipótese, caso a sua imposição não se mostrar mais necessária. Precedentes: AgRg no AgRg no AREsp 596.562/RJ, Relator Minis-tro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 24/8/2015; e AgRg no REsp 1.491.088/SP, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 12/5/2015. 6. No caso em foco, autora, ora recorrente, requer a condenação do Estado do Rio Grande do Sul na obrigação de fornecer (fazer) o medicamento Lumigan, 0,03%, de uso contínuo, para o tratamento de glaucoma primário de ângulo aberto (C.I.D. H 40.1). Logo, é mister acolher a pretensão recur-sal, a fim de restabelecer a multa imposta pelo Juízo de primeiro grau (fis. 51-53). 7. Recurso especial co-nhecido e provido, para declarar a possibilidade de imposição de multa diária à Fazenda Pública. Acórdão submetido à sistemática do § 7º do artigo 543-C do Código de Processo Civil de 1973 e dos arts. 5º, II, e 6º, da Resolução STJ n. 08/2008.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça prosseguindo no julgamento, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Assusete Magalhães e os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria, Napoleão Nunes Maia Filho e Mauro Campbell Marques votaram com o Sr. Ministro Relator.

    Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Francisco Falcão e Og Fernandes.

    Brasília (DF), 26 de abril de 2017 (Data do Julgamento)

    MINISTRO BENEDITO GONÇALVES Relator

    RELATÓRIO

    O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por (...), às fis. 136-141, com arrimo nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional, contra acórdão oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cuja ementa está consignada nos seguintes termos:

    Processual civil. Agravo. Decisão monocrática. Jurisprudência dominante. Técnica executiva. Poder público. Astreinte. Ineficácia.

    De acordo com jurisprudência dominante, a aplicação da astreinte ao Poder Público só acarreta custos desnecessários, revertidos injusti-ficadamente ao particular, porque destituída da coercitividade a que se destina.

    Hipótese de retratação não con? -gurada (? . 122).

    Noticiam os autos que a ora recorrente ajuizou ação ordinária de obrigação de fazer, com requerimento para a antecipação da tutela de mérito, em desfavor do Estado do Rio Grande do Sul, ora recorrido, ao argumento de sofrer de glaucoma primário de ângulo aberto (C.I.D.

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    H 40.1), razão pela qual requereu a condenação do réu na obrigação de continuamente fornecer (fazer) o medicamento Lumigan, 0,03%, para o tratamento da moléstia que lhe acomete.

    O Juízo singular julgou procedente a pretensão autoral e condenou o réu no fornecimento contínuo do medicamento Lumigan, 0,03% à autora ou, havendo impossibilidade de fornecer o fármaco em foco, no repasse de numerário suficiente para sua aquisição, sob pena de multa diária de meio salário mínimo (fis. 51-53).

    Irresignado, o ente público réu apelou da decisão supra no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo que o relator da irresignação recursal em comento lhe deu provimento monocraticamente e excluiu a imposição de multa diária ao Poder Público (fis. 94-98).

    Na sequência, a autora, ora recorrente, manejou agravo regimental, mas a Vigésima Segunda Câmara Cível manteve a decisão unipessoal do relator, conforme a ementa supra.

    No bojo do apelo nobre, a recorrente sustenta afronta ao art. 461 do CPC/1973, porque o aludido dispositivo não exclui a sua aplicação quanto aos entes públicos. Também alega que o acórdão recorrido diver-giu do entendimento esposado por esta Corte, a qual ostenta orientação justamente no sentido de ser possível impor astreintes à Administra-ção, com fim de compeli-la a cum-prir obrigação imposta pelo Poder Judiciário.

    O recorrido, nada obstante ter sido regularmente intimado, deixou transcorrer in albis o prazo para apresentação de contrarrazões (? . 166).

    O recurso especial foi admitido pelo Primeira Vice-Presidência do Tribunal de Justiça gaúcho como representativo de controvérsia (fis. 169-175).

    Por meio da decisão de ? . 185, admiti o recurso como representativo de controvérsia, nos seguintes termos:

    Trata-se de recurso especial admitido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul como representativo de controvérsia, nos termos do art. 543-C, § 1º, do CPC, a qual respeita à possibilidade de ser imposta a multa a que alude o art. 461 do CPC, nos casos de descumprimento da obrigação de fornecer medicamentos, imposta a ente estatal.

    Infere-se que até o presente momento o tema supra não foi submetido à Corte nos termos dos arts. 543-C do CPC e 2º da Resolução/STJ n. 8, de 7 de agosto de 2008.

    Dessarte, tendo em vista a multiplicidade de recursos a respeito da questão jurídica em foco, admito o processamento do presente recurso repetitivo, a fim de que a controvér-sia seja dirimida no âmbito da Primeira Seção do STJ e, para tanto, determino a adoção das seguintes providências:

    1. em face do interesse da União, dos Estados e do Distrito Federal no julgamento da matéria, oficie--se à União e aos Excelentíssimos Senhores Governadores das Unidades da Federação para, querendo, se manifestarem a respeito, no prazo de quinze dias;

    2. dê-se vista ao Ministério Público para parecer, em quinze dias (art. 3º, II);

    3. comunique-se, com cópia da presente decisão, aos Ministros da 1ª Seção do STJ e aos Presidentes dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, nos termos e para os fins previstos no art. 2º, § 2º, da Resolução n. 8/2008;

    4. suspenda-se o julgamento dos demais recursos sobre a matéria versada no presente apelo nobre, consoante preceitua o § 2º do art. 2.º da Resolução/STJ n. 8/2008.

    Publique-se. Intime-se. Oficie-se. O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso especial (fis. 248-254).

    O Estado da Bahia (fis. 261-265), o Estado de Roraima (fis. 270-274), o Estado do Piauí (fis. 276-279), o Estado do Pará (fis. 281-288) o Estado do Ceará (fis. 291-296), o Estado de Pernambuco (fis. 302-307), o Estado do Rio de Janeiro (fis. 309-314), o Estado de Goiás (fis. 316-329), a União (fis. 331-346), o Estado da Acre (fis. 448-458) e os Estados da Federação e o Distrito Federal (fis. 461-482) apresentaram manifestação, sendo que todos os entes públicos relacionados requereram, em suma, o não provimento do recurso especial.

    É o relatório.

    VOTO

    O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (Relator): Preliminarmente, o recurso especial merece ser conhecido quanto ao seu cabimento pela alínea "a" do permissivo constitucional, porque o art. 461 do CPC/1973 foi prequestionado pelo acórdão recorrido e foram preenchidos os demais requisitos de admissibilidade recursal.

    Inicialmente, antes de adentrar a questão de fundo, é mister tecer algumas considerações a respeito do direito à saúde.

    A promulgação da Constituição de 1988 elevou a saúde à...

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