O acúmulo de funções e o Direito ao Aumento Salarial

AutorRenato Sabino Carvalho Filho
Páginas168-187

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de fixar judicial-mente um novo salário ao empregado quando o empregador atribuir-lhe quantidade ou qualidade de trabalho deveras superior à inicialmente contratada, quebrando a base objetiva do contrato de trabalho.

Quando da contratação, empregado e empregador normalmente pactuam expressamente as funções a serem desempenhadas e, em troca da força de trabalho, convencionam o valor da retribuição salarial. Trata-se da comutatividade na relação contratual, pois à prestação do empregado corresponde a contraprestação do empregador, previamente estabelecida.

A problemática surge quando, após a contratação, o empregado se vê surpreendido com a obrigação de desenvolver outras funções, despendendo força de trabalho maior do que a inicialmente acordada, porém não recebe nenhum complemento de remuneração.

Nessa hipótese, há o aumento na prestação, porém sem o respectivo aumento na contraprestação. Com isso, quebra-se a comutatividade do contrato, pois não há mais a relação de correspondência.

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A discussão do presente estudo diz respeito à possibilidade de o empregado buscar no Poder Judiciário a fixação de novo salário, com o objetivo de retribuir o acréscimo de serviço que lhe foi assinalado, garantindo-lhe o direito fundamental ao salário compatível com a complexidade do trabalho.

2. A eficácia dos direitos fundamentais

Não há como negar que os direitos fundamentais merecem o devido alcance do operador do direito, a fim de que sejam aplicados de acordo com a sua máxima eficácia. De fato, a interpretação constitucional é regida, dentre outros, pelo princípio da máxima efetividade do seu texto, que encerra uma regra de que todas as normas devem ter aplicabilidade, ainda que com eficácia negativa, com vistas a impedir comportamentos que não estejam em consonância com os valores nela propostos.

Entretanto, para melhor analisar a questão em debate, deve-se recordar que os direitos fundamentais são dotados tanto de eficácia vertical, quanto de eficácia horizontal, o que depende do sujeito vinculado à efetivação de tal categoria de direitos.

A eficácia vertical dos direitos fundamentais trata da vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais, o que pode ser encontrado em diversos diplomas constitucionais, inclusive na Constituição Federal de 1988. Pode se dar de forma positiva, que permite a intervenção estatal para que os direitos fundamentais sejam respeitados, bem como de forma negativa, que se constitui como um meio de defesa do cidadão contra o Estado.

A vinculação positiva exige a intervenção do poder público para fazer garantir a efetivação dos direitos, o que alcança os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Assim, não é apenas o Poder Executivo que deve garantir as políticas públicas para a promoção dos direitos fundamentais, mas o legislador e o julgador também devem contribuir para a sua efetivação, seja disciplinando-os normativamente, seja proferindo decisões que garantam a sua aplicação1.

Já a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, em contraposição à eficácia vertical, traz o comando de que o respeito a eles também deve se dar nas relações entre os particulares. No campo das relações de trabalho, é forçoso concluir que os direitos sociais têm eficácia horizontal, direta e imediata, sob pena de não serem efetivados em tal categoria de relações privadas.

Conforme sintetiza Renato Rua de Almeida:

Os que defendem a eficácia imediata e direta ressaltam a necessidade da proteção do princípio da dignidade da pessoa humana na base dos direi-

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tos fundamentais consagrado no texto constitucional brasileiro no art. 1º, inciso III, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, mas, reconhecendo, ao mesmo tempo, que não constituem princípios de aplicação absoluta, mas que devem ser sopesados face a uma possível colisão com outros valores constitucionais pela aplicação do princípio da proporcionalidade e de seus subprincípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade propriamente dita, ou da razoabilidade. Os que defendem a eficácia mediata e indireta dos direitos fundamentais entendem que deve ser preservada a liberdade nas relações privadas, além de ressaltarem a importância da intermediação do Poder Legislativo na regulamentação dos direitos constitucionais, evitando-se o risco de uma exacerbação de poderes do judiciário. No entanto, admitem que, com a constitucionalização do direito privado, devem ser utilizadas as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e seus direitos anexos, da função social do contrato, e, mesmo da teoria da empresa, para a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.2

Vale citar, porém, a ponderação de Romita de que atualmente existe uma tendência de se superar a dicotomia entre eficácia mediata/imediata para se admitir soluções diferenciadas, levando-se em consideração as circunstâncias específicas de cada caso concreto. Citando João Caupers, leciona que, quando há oposição entre direito fundamental e autonomia da vontade, deve-se atentar que o problema deve ser resolvido casuisticamente, atendendo-se aos valores concretamente em jogo, que deve ser evitado o sacrifício total do direito fundamental ou da autonomia privada, bem como que poderão existir fatores de prevalência nessas relações interprivadas3.

Entretanto, conquanto sejam objeto de proteção constitucional, os direitos fundamentais estão sujeitos a limitações, mormente quando eles se colidem com outros direitos fundamentais.

Ao contrário da Constituição Federal do Brasil, a Lei Maior Portuguesa traz expressamente, em seu art. 18, a medida da proteção dos direitos fundamentais, tal como segue:

Art. 18. (Força jurídica)

  1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

  2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

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Os direitos fundamentais estão sujeitos a choques, caso em que se deve ponderar qual deles deve prevalecer no caso concreto. Robert Alexy, ao comentar sobre o sopesamento entre os princípios, em raciocínio que pode ser perfeitamente aplicado às limitações dos direitos fundamentais, propõe que a Lei da colisão seja assim anunciada: "As condições sobre as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem preferência"4.

A ideia do professor alemão é a de que não há uma precedência absoluta de um dos princípios, ou seja, o confiito não se resolve pela invalidade de um dos princípios, ou pela introdução de uma exceção, mas sim pelo estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre eles, com base nas circunstâncias do caso concreto. Tal situação foi resumida por Alexy na fórmula "(P1 P P2) C" ou "(P2 P P1) C" (O Princípio 1 prevalece sobre o Princípio 2 na Circunstância 1, mas, por outro lado, o Princípio 2 prevalece sobre o Princípio 1 na Circunstância 2)5.

O princípio da proporcionalidade é o mecanismo pelo qual se pode concretamente fazer a limitação dos direitos fundamentais. Importante ponderação a ser feita é que o princípio serve para se medir a proporção de afetação de preceitos constitucionais. Não se pode, assim, cogitar de arguir a inconstitucionalidade de alguma medida por violar o princípio da proporcionalidade. Ao contrário, o princípio traz raciocínio pelo qual um direito prevalece sobre o outro; no caso, a inconstitucionalidade seria pela violação ao direito constitucionalmente assegurado.

A doutrina o divide em três grandes elementos, subcritérios, princípios ou subprincípios, que devem ser seguidamente analisados para poder verificar se determinada restrição ao direito fundamental é ou não proporcional.

Pelo princípio da adequação, a restrição deve ser apta e adequada para se possibilitar a proteção de outro direito ou bem jurídico, desde que eles também sejam destinatários de proteção constitucional. Em uma análise prática, é a verificação da possibilidade de a medida restritiva alcançar a finalidade, ou seja, é a constatação de que o fim pode ser alcançado pelo meio eleito.

O princípio da necessidade delimita que a medida da limitação deve ser imprescindível para se alcançar o objetivo pretendido. Deve-se buscar o meio menos gravoso para se atingir, com a mesma eficácia, o objetivo final6. Nesse ponto, é feito um teste comparativo para se verificar se o ato limitador é necessário quando comparado com outras alternativas.

De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, o exame da necessidade envolve duas etapas distintas. Em primeiro lugar, deve-se examinar a igualdade de adequação dos meios, para se verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim.

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