O acordo nacional do uso seguro do amianto

AutorLorena Vasconcelos Porto - Luciano Lima Leivas e Márcia Kamei Lopez Aliaga
Páginas167-182

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Lorena Vasconcelos Porto1

Luciano Lima Leivas2

Márcia Kamei Lopez Aliaga3

Introdução

O presente artigo visa à análise da validade do denominado acordo nacional do uso seguro do amianto frente à ordem jurídico-constitucional brasileira. Primeiramente, demonstra-se que o amianto é substância reconhecidamente cancerígena, no âmbito nacional e internacional, já tendo sido banido por diversos países do mundo, além de existirem leis estaduais e municipais brasileiras no mesmo sentido.

Não obstante a certeza científica de que o amianto é um agente químico cancerígeno e de que não existe limite seguro de exposição, no Brasil o aproveitamento econômico do mineral está autorizado pela doutrina do uso controlado ou seguro do amianto. Trata-se de um sistema de normas composto, entre outros diplomas, pela Convenção n. 162 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual propõe o princípio da revisão periódica das legislações nacionais, pela Lei Federal n. 9.055, de 1995, e pelo denominado acordo nacional de uso seguro do amianto.

O Estado brasileiro, por meio da Lei n. 9.055/1995, delegou aos particulares a revisão periódica das normas de saúde, meio ambiente e segurança do trabalho, integrantes do conceito internacional de legislação nacional de aproveitamento econômico do amianto. A normatização privada, por sua vez, se instalou median-te a produção de normas coletivas, sendo que o acordo nacional de uso seguro do amianto é o instrumento normativo privado de que se valem os sindicatos de trabalhadores e as empresas para regular matérias de matiz indisponível e de ordem pública4.

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Com efeito, a autonomia privada coletiva somente pode ser exercida nos limites da ordem pública e da indisponibilidade de determinados direitos e interesses coletivos em sentido amplo. Nesse sentido, tem-se que determinadas cláusulas do acordo nacional de uso seguro do amianto violam normas legais e constitucionais da ordem jurídica brasileira.

Primeiramente, têm-se as cláusulas relativas às denominadas comissões de fábrica, as quais exercem atividades típicas da inspeção do trabalho, em evidente usurpação da competência constitucional da União Federal estabelecida no art. 21, inciso XIV, da Constituição Federal. Ademais, tais comissões foram objeto de veto presidencial formal e expresso durante o processo legislativo que culminou na positivação da Lei n. 9.055/95.

Em seguida, demonstra-se a invalidade das cláusulas do acordo nacional de uso seguro do amianto que prescrevem que, no caso de ser atingido o limite de tolerância de exposição dos trabalhadores ao amianto nele previsto (0,1 fibra/cm³ de ar), a empresa poderá manter sua atividade, mas deverá adotar ações corretivas e solicitar nova avaliação no prazo de 30 dias. Tais dispositivos violam norma de ordem pública, a saber, a Norma Regulamentadora n. 3, do Ministério do Trabalho, que determina a imediata paralisação da atividade no caso de atingimento do limite de tolerância.

Por outro lado, há normas legais (art. 169 da CLT e legislação previdenciária) que estabelecem que, no

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obrigações relativas ao uso (pretensamente controlado) de substância cancerígena.

O amianto como substância reconhecidamente carcinogênica

Asbesto, denominação de origem grega, ou amianto, designação de raiz latina, são sinônimos comerciais de um grupo heterogêneo de minerais encontrados naturalmente na crosta terrestre e facilmente separáveis em fibras. O amianto reúne diversas propriedades físicas, destacando-se a incombustibilidade, flexibilidade, boa resistência à tensão e à corrosão, sendo excelente isolante térmico e acústico.

O amianto era chamado, de acordo com uma anti-ga crença, de “lã da salamandra”, pois este pequeno animal era considerado, erroneamente, capaz de desafiar o fogo sem se queimar (ROSSI, 2010, p. 45).

O período após a Segunda Guerra Mundial foi marcado por significativos avanços e inovações tecnológicas, conhecido como Terceira Revolução Industrial. Após o intenso desenvolvimento tecnológico da aplicação industrial do amianto, especialmente durante a reconstrução da Europa devastada pela Segunda Guerra, a substância passou a ser pesquisada pelas suas propriedades carcinogênicas, notadamente em relação aos trabalhadores expostos nos ambientes laborais.

A Organização Mundial de Saúde, por meio do documento intitulado Critério de Saúde Ambiental n. 203, de 1998, declarou que todas as variedades minerais do amianto, inclusive o amianto crisotila ou branco, são cancerígenas e que não existe limite seguro de exposição a este agente químico5.

De fato, consta do Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999, no Anexo II, Lista A, item II, que o amianto é agente etiológico e de risco associado às seguintes doenças ocupacionais: neoplasia maligna do estômago (C16.-); neoplasia maligna da laringe (C32.-); neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-); mesotelioma da pleura (C45.0); mesotelioma do peritônio (C45.1); mesotelioma do pericárdio (C45.2); placas epicárdicas ou pericárdicas (I34.8); asbestose (J60.-); derrame pleural (J90.-); e placas pleurais (J92.-).

Em razão das propriedades cancerígenas do amianto, diversos países adotaram o banimento absoluto do uso e do aproveitamento econômico desse mineral e dos produtos que o contêm, como medida efetiva para proteger a saúde não apenas dos trabalhadores, mas também da própria sociedade.

Ilustrativamente, tem-se que os seguintes países adotaram a opção política do banimento do amianto: África do Sul (2007), Alemanha (1993), Arábia Saudita (1998), Argentina (2001), Austrália (2003), Áustria (1990), Bahrein (1996), Bélgica (1998), Brunei (1994), Bulgária (2005), Burkina Faso (1998), Chile (2001), Chipre (2005), Cingapura (1989), Coreia do Sul (2007), Croácia (2006), Dinamarca (1986), Egito (2005), Emirados Árabes (2000), Eslováquia (2005), Eslovênia (1996), Espanha (2002), Estônia (2005), Finlândia (1992), França (1996), Grécia (2005), Holanda (1991), Honduras (2004), Hungria (2005), Irlanda (2000), Islândia (1983), Itália (1992), Japão (2004), Jordânia (2005), Kuwait (1995), Letônia (2001), Lituânia (2005), Luxemburgo (2002), Malta (2005), Noruega (1984), Nova Caledônia (2007), Nova Zelândia (2002), Omã (2001), Polônia (1997), Portugal (2005), Principado de Mônaco (1997), Qatar (2010), Reino Unido (1999), República Checa (2005), Romênia (2005), Suécia (1986), Suíça (1989), Taiwan (2009) e Uruguai (2002)6.

No Brasil, vários Estados da Federação possuem leis que proíbem o amianto, tais como o Estado de São Paulo (Lei n. 12.684, de 2007), Rio Grande do Sul (Lei n. 11.643, de 2001), Pernambuco (Lei n. 12.589, de 2004), Mato Grosso (Lei n. 9.583, de 2011) e Santa Catarina (Lei n. 17.076, de 2017). Ademais, diversos Municípios brasileiros legislaram nesse sentido proibitivo, a citar, apenas no Estado de São Paulo, Osasco (Lei n. 90, de 2000), Mogi Mirim (Lei n. 3.316, de 2000), São Caetano do Sul (Lei n. 3.898, de 2000), Bauru (Lei n. 4.667, de 2001), Ribeirão Preto (Lei n. 9.264, de 2001), Barretos (Lei n. 3.425, de 2001), Jundiaí (Lei n. 332, de 2001), Campinas (Lei n. 10.874, de 2001), Guarulhos (Lei n. 5.693, de 2001), entre outros 7.

O acordo nacional de uso seguro do amianto como norma coletiva

Não obstante a certeza científica de que o amianto é um agente químico cancerígeno e de que não existe limite seguro de exposição, no Brasil o aproveitamento

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econômico do amianto está autorizado pela doutrina do uso controlado ou seguro do amianto. Trata-se de um sistema de normas composto, entre outros diplomas, pela Convenção n. 162 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela Lei Federal n. 9.055, de 1995, e pelo denominado acordo nacional de uso seguro do amianto.

Como será demonstrado, trata-se de um sistema de normas que sobrepõe interesses econômicos aos interesses indisponíveis relacionados ao meio ambiente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal de 1988), à redução dos riscos de adoecimento relacionado ao trabalho (art. 7º, inciso XXIII, da CF/88), à saúde (art. 196 da CF/88) e à inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput, da CF/88).

No plano internacional, a OIT promulgou a Convenção n. 162, que serve como marco jurídico de balizamento para os Estados Nacionais que comungam da decisão política de autorização do aproveitamento econômico do mineral cancerígeno no sentido de edificarem suas legislações nacionais.

Além de proibições e restrições parciais sobre o uso do amianto, a Convenção n. 162 propõe o princípio da revisão periódica das legislações nacionais de acordo com o desenvolvimento de tecnologias de mitigação da exposição ao mineral cancerígeno e até mesmo na dire-ção da substituição do amianto por fibras alternativas menos nocivas ou inofensivas à saúde humana8.

No Brasil, a Convenção n. 162 foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 51, de 1989, e promulgada pelo Decreto n. 126, de 1991. A legislação nacional produzida sob os auspícios do diploma da OIT, de forma muito peculiar, acabou por deslocar o princípio da revisão periódica para a seara da autonomia privada coletiva, conforme se constata pela redação do art. 3º, § 3º, da Lei n. 9.055/959.

O modelo brasileiro, portanto, composto pelo sistema normativo heterônimo (Convenção n. 162 da OIT e Lei n. 9.055/95), chancela a participação normativa de...

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