Ação civil pública (PTM de araraquara ? PRT 15ª região) ? usina Santa Fé S/A

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EXCELENTÍSSIMA SENHORA JUÍZA DO TRABALHO DA____VARADO TRABALHO DE MATÃO-SP

O Ministério Público do Trabalho — Procuradoria do Trabalho no Município de Araraquara, com endereço na R. Padre Duarte, 151, 6e andar, Edifício América, Jardim Nova América, Araraquara-SP, CEP 14800-360, pelo Procurador do Trabalho que esta subscreve, no exercício de suas funções institucionais previstas nos arts. 127 e 129, inciso III, da Constituição da República e art. 83, incisos I, III e IV, da Lei Complementar n. 75/1993, e com fundamento nas disposições contidas nas Leis ns. 7.347/1985 e 8.078/1990, vem respeitosamente perante V. Exa. propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR

em face de Usina Santa Fé S/A, CNPJ n. 45.281.813/0001-35, com endereço na Estrada da Antiga Fazenda Itaquerê, s/n. Nova Europa/SP, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos:

1) Dos fatos

A Procuradoria do Trabalho no Município de Araraquara, a partir de decisão colegiada, decidiu instaurar expedientes de investigação em face de empresas da região envolvidas com a atividade de corte de cana-de-açúcar, a fim de apurar o cumprimento da legislação, inclusive da Norma Regulamentadora n. 15 do MTE, relativamente à exigência de labor com exposição a calor excessivo.

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A partir da documentação juntada, verificou-se que a empresa realizou o reconhecimento, como riscos físicos relacionados à atividade de cortador de cana, apenas de "radiações não ionizantes", e não da exposição a calor, particularmente calor elevado, de modo que, previsivelmente, nenhuma ação é proposta para enfrentamento desse agravo (fl. 153).

Curiosamente, o PCMSO apresentado pela empresa faz o reconhecimento da necessidade de conforto térmico, como medida de prevenção à fadiga, mas apenas em favor dos trabalhadores que realizam atividades intelectuais (justamente os menos expostos ao problema!)

(...)

Já os cortadores de cana não são, no mesmo programa, agraciados com considerações relacionadas a conforto térmico (fl. 231).

Percebe-se, portanto, que não apenas inexiste o reconhecimento do agente de risco e da necessidade de atenção ao trabalho do cortador sob calor excessivo, como ainda tais trabalhadores são tratados de forma discriminatória pela reclamada, dado que os empregados que desenvolvem atividades intelectuais recebem tratamento e cuidados diferenciados.

Também chama a atenção que o PCMSO efetivamente reconhece o desconforto térmico como medida necessária à prevenção da fadiga, nos seguintes termos: "15. Prevenção da fadiga — Analisar os locais do trabalho e o perfil psicossocial dos colaboradores e eliminação dos fatores predisponentes à fadiga, tais como: Desconforto térmico (...)." (fl. 228)

Não obstante, tal recomendação, digna de elogios, não é levada em consideração no que pertine aos cortadores de cana, mas apenas em favor dos trabalhadores não braçais, como se os primeiros não fossem igualmente sujeitos à fadiga, ou como se a fadiga do trabalhador braçal fosse menos importante que a do intelectual.

(...)

Providenciou-se, após, a intimação da empresa para que informasse quanto à forma de pagamento adotada com relação aos cortadores de cana (fl. 424), ante a reflexão feita de que o primeiro problema (labor em condições de calor excessivo), e particularmente qualquer solução viável para ele, guarda relação com a forma de salário por produção.

Comunicou a empresa que a forma de pagamento seria mista, mas a leitura da descrição do método utilizado permite aferir que é utilizado o pagamento por unidade de produção pura e simplesmente, como regra, sendo por exceção os trabalhadores pagos mediante diária se o salário calculado por produção não assegurar a percepção do piso da categoria (fls. 425/427).

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2) Corte manual de cana-de-açúcar: trabalho penoso mesmo sob as melhores condições climáticas

O objeto da presente ação civil pública relaciona-se com os prejuízos à saúde dos rurícolas, na atividade do corte manual de cana, quando prestado sob condições de calor extremo e quando associado à forma de pagamento por produção.

Entretanto, para melhor contextualização da realidade sob análise, mostra--se conveniente — não obstante seja fato notório que a atividade de corte manual de cana é extremamente desgastante — a exposição do que está implicado em tal tipo de labor, mesmo sob as melhores condições ambientais e climatológicas possíveis, vale dizer, qual o tipo de esforço e desgaste experimentado pelo cortador de cana mesmo quando não trabalha sob calor intolerável e reduzidíssima umidade relativa do ar.

Sobre o dia a dia de um cortador de cana em São Paulo, sob condições ambientais habituais, médias, esclarece o professor e pesquisador Francisco Alves1:

"(...)

O cortador de cana pode ser comparado a um atleta corredor fundista, de longas distâncias, e não a um corredor velocista, de curtas distâncias. Os trabalhadores com maior produtividade não são necessariamente os que têm maior massa muscular, tão necessária aos velocistas; para os fundistas, é necessário ter maior resistência física para a realização de uma atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na presença de fuligem, poeira e fumaça, por um período que varia entre 8 e 12 horas.

(...)

Com todo este detalhamento da atividade do corte de cana, fica fácil entender por que morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em São Paulo: por causa do excesso de trabalho."

Essa, portanto, é a realidade diária dos cortadores de cana-de-açúcar: realizam esforço comparável ao de um atleta em uma competição de alto nível, como uma maratona, mas diferentemente do atleta profissional, que não compete todos os dias e reserva períodos para a recuperação física, o cortador desenvolve tal atividade extenuante todos os dias, cinco ou seis vezes por semana, ao longo de vários meses.

Mas tal elevado grau de esforço físico se dá em condições atmosféricas médias, normais, sob o sol e intempéries, mas não sob condições extremas. Não se previu, no estudo do pesquisador, as consequências do desenvolvimento da mesma atividade sob calor extraordinário, acima do suportável.

Portanto, para compreensão do que se passará, a seguir, a expor, é necessário que se tenha em mente que as condições de trabalho acima expostas

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constituem o substrato, o piso mínimo sobre a qual se acrescenta o desgaste ainda maior decorrente do calor excessivo e umidade muito baixa.

3) Corte manual de cana-de-açúcar: trabalho desumano quando exercido sob as piores condições climáticas

Hoje não mais se discute que o clima no planeta está sofrendo acelerada mudança, e para pior. O aquecimento global já é uma realidade. O reconhecimento dá-se oficialmente no âmbito da Organização das Nações Unidas.

(...)

Corroborando tais conclusões, vem sendo apurado que os anos mais quentes da história, desde 1850 (portanto há mais de um século e meio), são justamente os últimos, vale dizer, o período histórico mais recente. 2010, por exemplo, foi o ano mais quente de que se tem notícia, empatado com 1998 e 2005, até então os recordistas.

(...)

Tal realidade vem sendo sentida, como não poderia deixar de ser, inclusive no interior de São Paulo. Basta que se converse com moradores mais antigos da região para se descobrir que, décadas atrás, o calor não atinja níveis tão altos, e os períodos de estiagem e de umidade extremamente baixa não duravam tanto.

Tais digressões foram feitas para enfatizar que não se pode analisar o problema do calor excessivo à luz da experiência humana pregressa, de décadas atrás. O calor a que estão submetidos hoje os cortadores de cana na região não é o mesmo que se experimentava na década de 1980, e muito menos que o sentido na primeira metade do século XX. Ou seja, trabalhar ao ar livre na década de 1980 era uma coisa; outra, bastante diferente, é trabalhar ao ar livre em 2010 e 2011, enfrentando calor maior.

O calor, portanto, está aumentando, sendo impossível à fisiologia humana acompanhar o ritmo vertiginoso da mudança. O funcionamento do corpo humano é resultado de um processo de evolução natural que levou centenas de milhares de anos para chegar ao estágio atual, e não possui infinita capacidade de adaptação a novas condições ambientais. Além de determinado limite, o corpo humano não mais consegue suportar o calor, sem danos consideráveis à saúde. E tal limite já está sendo atingido e ultrapassado, inclusive no interior de São Paulo, no caso dos cortadores de cana, não podendo a seara trabalhista fechar os olhos para tal realidade, sob pena de se manter milhares de trabalhadores desamparados frente ao risco de patologias sérias e até de morte.

(...)

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No estudo "Impacto sobre as condições de trabalho: o desgaste físico dos cortadores de cana-de-açúcar"2, do professor Erivelton Fontana de Laat e outros, analisa-se especificamente as consequências à saúde dos cortadores de cana do trabalho sob calor:

"Na amostra analisada, em média, o grupo ultrapassou a carga cardiovascular prescrita de 33% e individualmente 8 em 10 trabalhadores ultrapassaram este limite. No método de diferença entre batimento em repouso e em trabalho, todos ultrapassaram os 35 batimentos proposto como limite para saúde. O estudo está em andamento (FAPESP 06-51684-3) e aumentamos o tamanho da amostra de modo a obter dados estatísticos...

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