Abandono

AutorGilberto Thums, Ana Carolina Costa Fonseca
CargoProcurador de Justiça. Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Direito Penal (FMP)/Doutora em Filosofia (UFRGS). Professora de Filosofia (UFCSPA)
Páginas74-94
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 11, 2016, p. 74-94
ABANDONO: um problema moral ou penal?
Gilberto Thums*1
Ana Carolina da Costa e Fonseca**2
Resumo: O artigo discute, de uma perspectiva juslosóca, as várias formas de abandono que são
consideradas crime no ordenamento jurídico brasileiro (abandono de incapaz, de recém-nascido,
material, intelectual, moral, sonegação do estado de liação e de idosos). Discute-se a criminali-
zação de uma conduta que é, fundamentalmente, a violação de uma obrigação moral. Por m, ao
tratar do abandono afetivo de idosos, defende-se que a reciprocidade é o elemento implícito que
deve existir para se poder exigir de outrem o compromisso de não abandonar um ascendente idoso.
Abstract: This paper discuss, on a philosophical and juristic perspective, the different forms of aban-
donment in the Brazilian law system (abandonment of unable, new born, elderly, material, moral,
intellectual abandonment, withholding of the liation). We discuss the criminalization of a behavior
which is, essentially, the violation of the moral obligation. Lastly, we analyze the affective abandon-
ment of elderly. We defend that reciprocity is the implicit element that must exist to obligate someone
to care on a senior, who is an ascending relative.
O crime de abandono está previsto em vários dispositivos penais da le-
gislação brasileira e se refere sempre à violação do dever de assegurar o bem
-estar material, a integridade da vida e da manutenção da saúde de outrem, e
o estado de liação. A intenção do legislador é proteger aqueles que estão em
situação de vulnerabilidade. Infância e velhice são as fases da vida que preci-
sam de proteção especial. Contudo, do fato de haver um dever moral de cuidar
do outro não se segue que a falta de cuidado deva ser considerada um crime.
Neste artigo, vamos discutir as diversas formas de crime de abandono previs-
tas no ordenamento jurídico brasileiro, tanto do ponto de vista penal quanto do
ponto de vista juslosóco. A compreensão das formas de crime de abandono
é o ponto de partida para discutirmos incoerências da legislação ao estabelecer
as várias formas desse crime, bem como para discutirmos a motivação para se
tomar como um crime o não respeito à obrigação especial de proteção para com
algumas pessoas.
Em princípio, podemos dizer que a obrigação de cuidar de nossos des-
cendentes e ascendentes decorre do reconhecimento de que relações familia-
*1Procurador de Justiça. Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Direito Penal (FMP).
**2Doutora em Filosoa (UFRGS). Professora de Filosoa (UFCSPA).
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 11, 2016, p. 74-94
res são fundamentalmente relações de afeto e de cuidado. E, por isso, repudia-
mos moralmente que pessoas em situação de fragilidade não recebam afeto e
cuidado. Entretanto, é um fato que pessoas são abandonadas por aqueles que
têm o dever moral de cuidar delas. Em resposta a uma falha moral, o legisla-
dor criou uma obrigação jurídica e tipicou o abandono, atribuindo uma pena
a quem realizar essa conduta. Iniciamos este artigo com a apresentação das
formas como pode ocorrer o crime de abandono.
1. O crime de abandono na legislação pátria
A legislação é feita aos poucos. À medida que problemas morais e de
convivência surgem na sociedade, o legislativo move-se ou não; às vezes, mes-
mo se movendo, o faz lentamente, para dar uma resposta legal a tais proble-
mas. Quando há a positivação de normas, não é difícil ocorrerem avaliações
contraditórias da realidade, especialmente, dado o lapso temporal entre uns e
outros dispositivos legais. Sociedades diferentes, legisladores diferentes, valo-
res morais diferentes explicam não apenas por que alguns crimes são criados,
como também por que restam incoerências na legislação. Segue análise dos
dispositivos legais que criminalizam a conduta de abandonar alguém. Quando a
legislação protege vulneráveis que são crianças ou adolescentes, o fundamento
é a responsabilidade dos ascendentes para com seus descendentes. Nesse
caso, a responsabilidade decorre do fato de a vida dos descendentes decorrer
diretamente de ações realizadas por seus ascendentes, motivo pelo qual se
tornam responsáveis não apenas pela vida, como também pelo bem-estar dos
lhos. Quando a legislação protege vulneráveis que são idosos, o fundamento é
a responsabilidade que decorre do afeto recebido em tenra idade. Um elemento
pressuposto, mas não apresentado pelo legislador, nesse caso, é a reciproci-
dade.
1.1 Abandono de incapaz: o artigo 133 do Código Penal
O primeiro dispositivo legal que se refere ao abandono está previsto no
artigo 133 do Código Penal3 e diz respeito a pessoas incapazes de se defen-
3 Conforme o Código Penal brasileiro: “Abandono de incapaz. Art. 133 – Abandonar pessoa
que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de
defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de seis meses a três anos. § 1º
– Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a cinco anos. §
2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. Aumento de pena: § 3º – As penas
cominadas neste artigo aumentam-se de um terço: I – se o abandono ocorre em lugar ermo; II – se
o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima. III – se a vítima
Abandono: um problema moral ou penal?

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