5.4 Aplicação e Limites do Direito Social à Moradia. A Relação Jurídica de Direito à Moradia. A Responsabilidade do Estado Brasileiro

AutorLoreci Gottschalk Nolasco
Páginas212-228

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Vimos no terceiro capítulo, fundamentado em Celso Lafer, que os direitos sociais, como o direito ao trabalho, saúde, educação e moradia, têm como sujeito passivo o Estado, porque, na interação entre governantes/governados, ao sujeito ativo, à coletividade, incumbe a responsabilidade de sua concretização; o titular dos direitos sociais continua sendo - como nos direitos de primeira geração - o homem, como objeto de sua destinação social, em sentido amplo. Cabe ao legislador, constitucional e ordinário, dar delineamento normativo e regulação social à efetividade dos direitos fundamentais sociais, tendo em vista a aplicabilidade das normas do ordenamento jurídico.

Conforme Konrad Hesse, referindo-se à Constituição da República Federal da Alemanha, as normas restringem as garantias jurídico-fundamentais, tanto na essência dos direitos clássicos do homem quanto o conteúdo de fundo dos próprios princípios fundamentais, sociais ou não, escritos ou não. O que

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ocorre é que os direitos fundamentais sociais, como direito ao trabalho, ao salário justo ou o direito à habitação, contêm estrutura diferente da estrutura dos direitos fundamentais clássicos. Os direitos fundamentais sociais diferenciam-se das normas que vinculam determinações relacionadas aos objetivos estatais das normas constitucionais que estabelecem obrigatoriamente prestações, tarefas, dirigidas à atuação do Poder Público.64Hesse conclui que garantias como o direito à habitação é de estrutura diferente dos direitos fundamentais clássicos, uma vez que exigem ações estatais para a realização, a prestação do programa social neles contidos, e requerem, regularmente, uma dinâmica permanente, não somente do legislador, mas também dos órgãos da administração. A realização dos direitos sociais pelo Estado pode ultrapassar a capacidade econômico-financeira, porque o poder estatal mesmo, muitas vezes, não dispõe dos meios para a sua realização; assim, não poderá prometer na Constituição o que não poderá cumprir na realidade social.

Andreas Krell salienta que a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (de 1949) não incorporou nenhum ordenamento sistemático dos direitos sociais da "segunda geração" (dos trabalhadores, educação, saúde, assistência), fato que se deve às más experiências com a Carta anterior de Weimar. Essa Constituição de 1919 é tida, no mundo inteiro, como uma das primeiras Cartas que incorporaram os direitos sociais a prestações estatais no seu texto. No entanto, para a doutrina constitucional alemã pós-guerra, ela serve como modelo de uma Carta "fracassada", que, inclusive, contribuiu para a radicalização da política desse país nos anos vinte e a tomada do poder pelos nazistas em 1933. Os seus modernos artigos sobre direitos sociais foram "ridicularizados", por parte dos integrantes da extrema direita e esquerda política, como "promessas vazias do Estado burguês" e "contos de lenda".65

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Não se pode mais permitir a postergação da aplicabilidade e eficácia de qualquer nome do direito, principalmente do Direito Constitucional, afinal o direito é o instrumento pelo qual se faz da palavra vida e, na vida, a Justiça. É como o padre que transforma pelo milagre da transubstanciação, o pão em Corpo de Cristo - "eis o mistério da Fé" -, o profissional do Direito deve transformar, pelo milagre da vivificação da palavra, o verbo em vida - eis o desafio da Justiça humana.

Embora resultante de um impulso político, que defiagra o poder constituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico e, sendo normas jurídicas, tem caráter imediato e prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataforma política, até porque, em nível lógico, nenhuma lei, independentemente de sua hierarquia, é editada para não ser cumprida.

Ao longo da história brasileira, sobretudo nos períodos ditatoriais, reservou-se ao direito constitucional um papel menor, marginal. Nele buscou-se não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce.

Cumpre lembrar que a eficácia de uma Constituição dependerá não só da sua fidelidade aos valores sociais e políticos consagrados pela sociedade, mas também - e principalmente - de uma correta interpretação daquilo que o texto prescreve.

Acontece que não existe um critério que permita identificar, com segurança, quais dispositivos constitucionais podem ser reputados auto-aplicáveis e quais dependem de regulamentação.

Contudo, marcando uma decidida ruptura em relação a doutrina constitucional clássica, apresenta-se Canotilho com a seguinte a lição:

(...) pode e deve-se falar da ‘morte das normas constitucionais programáticas. (...) O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: ‘simples programas’, ‘exportações morais’, ‘declarações’, ‘sentenças políticas’, (...) ‘programas futuros’, juridicamente

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desprovidos de qualquer vinculatividade. Às ‘normas programáticas’, é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição.66José Afonso da Silva, em obra famosa, trata somente da eficácia jurídica dos direitos sociais. Ele mantém a sua subdivisão das normas naquelas de eficácia imediata (plena), eficácia contida (mais restringíveis por lei ordinária) e - as mais interessantes para nós - as normas de eficácia limitada ou restrita - estas subdivididas em "normas declamatórias de princípios institutivos ou organizativos e de princípios programáticos".67Embora entenda José Afonso da Silva, que não há norma constitucional destituída de eficácia, muitas vezes, à sua eficácia jurídica falta base para sua aplicabilidade; isto não significa que os direitos sociais deixaram de irradiar efeitos jurídicos. O que se admite, portanto, é que a efetividade de certas normas constitucionais não manifesta na plenitude a força de seus efeitos jurídicos na ordem prática e, por esta razão, as normas constitucionais diferenciam-se quanto ao grau de seus efeitos jurídicos.

Especialmente quanto às normas constitucionais de princípio programático, o autor salienta que:

O conjunto desses princípios forma o chamado conteúdo social das constituições. Vem daí o conceito de constituição-dirigente, de que a Constituição de 1988 é exemplo destacado, enquanto define fins e programas de ação futura no sentido de uma orientação social demo-crática. Por isso, ela, não raro, foi minuciosa e, no seu compromisso com as conquistas liberais e com um plano de evolução política de conteúdo social, o enunciado de suas normas assumiu, muitas vezes, grande imprecisão, comprometendo sua eficácia e aplicabilidade imediata, por requerer providências ulteriores para incidir concretamente. Muitas normas são traduzidas no texto supremo apenas em princípio, como esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários. São estas que constituem as normas constitucionais de princípio programático.68

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É fácil conferir-se que normas programáticas são normas definidoras de intenção, de uma posição, de uma dimensão a ser social e juridicamente atingida. Para elas, não se impõe propriamente uma obrigação jurídica, mas traduz o conteúdo de princípios que se incluem entre os fins do Estado. Assim, cabe à Constituição programar toda a orientação política, ideológica, social e econômica do desenvolvimento da sociedade, inclusive na fixação do programa dos direitos sociais à moradia, assegura Weisheimer.69Segundo Inocêncio Mártires Coelho, as disposições constitucionais não auto-aplicáveis "são disposições constitucionais incompletas ou insuficientes, para cuja execução se faz indispensável a mediação do legislador, editando normas infraconstitucionais regulamentadoras". O autor, fundamentado no magistério de Rui Barbosa, enfatiza ainda que:

[...] as disposições constitucionais, em sua maioria, não são auto-aplicáveis, porque a Constituição, não se executa a si mesma, antes impõe ou requer a ação legislativa, para lhe tornar efetivos os preceitos, o que não quer dizer, entretanto, que a Lei Maior possua cláusulas ou preceitos a que se deva atribuir o valor moral de conselhos, avisos ou lições; até porque todos têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos.70Por conseguinte, a norma constitucional vigente (Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000) dispõe que não cabe a nenhum cidadão investir no poder jurídico para exigir prontamente uma prestação positiva do Estado. As garantias do direito social à moradia consubstanciam-se na capacidade do Estado em promover adequadamente condições materiais a seus habitantes, em sua dimensão individual e coletiva, associadas a fatores como a política de geração de riquezas no âmbito da sociedade e a forma de aplicação dessas riquezas, de fundos especiais de construção e a forma de distribuição dos direitos à casa própria em escala proporcional a toda a coletividade.

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Referindo-se a direitos fundamentais enquanto direitos a prestações positivas de natureza programática, sua efetivação está submetida, segundo Gilmar Ferreira Mendes, dentre outras condicionantes, à reserva do financeiramente possível; são pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito e estão submetidas à reserva do possível.71No entanto, assegura o autor, que o constituinte, embora em capítulos destacados, houve por bem consagrar os direitos sociais, que também vinculam o Poder Público, por força inclusive da eficácia vinculante do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Para ele, "Tais pretensões exigem não só ação legislativa, como, não raras vezes, medidas administrativas". Com isso, realça que:

Se o Estado está constitucionalmente obrigado a prover tais demandas, cabe indagar se, e em que medida, as ações com o propósito de satisfazer tais pretensões podem ser juridicizadas, isto é...

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