2018:50 years between Continuities and the Intensification of State Violence/2018: 50 Anos entre Permanencias e o Recrudescimento da Violencia de Estado.

AutorPradal, Fernanda Ferreira
CargoReport

Introducao

O ano de 1968 no Brasil foi marcado, de um lado, por intensas manifestacoes estudantis que contaram com o apoio de setores da classe media e da Igreja, greves de metalurgicos contra a politica economica da ditadura e o inicio insipiente de acoes de organizacoes da chamada luta armada. De outro, a crescente repressao as manifestacoes, com violencia direta e detencoes arbitrarias, que tiveram o assassinato do estudante secundarista Edson Luis como resultado, em 28 de marco de 1968. Essa dinamica de manifestacoes estudantis e de repressao violenta e assassina, teve a Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho daquele ano, como icone da resistencia de amplos setores a ditadura. O ascendente recrudescimento da repressao contra mobilizacoes foi acompanhado de aumento da censura no meio cultural, jornalistico e estudantil e do controle politico sobre sindicatos e organizacoes estudantis. O Ato Institucional n. 5 de 13 de dezembro de 1968, e o simbolo deste processo de aprofundamento da institucionalizacao da violencia politica.

O mes de maio de 2018 e o marco de cinquenta anos dos acontecimentos de maio de 1968. O presente artigo, partindo da analise das permanencias da estrutura institucional da ditadura nos tempos de dita democracia, pretende apresentar a implicacao institucional das policias, do Ministerio Publico e do Judiciario na manutencao e no acirramento das graves violacoes de direitos humanos perpetradas pelo Estado. A populacao negra e pobre e, tanto historicamente quanto atualmente, o principal alvo desta violencia e o Estado e responsavel por uma pratica diaria de verdadeiro genocidio.

Partindo dessa analise, entramos na problematica da defesa dos direitos humanos e na situacao de vulnerabilidade e risco na qual vivem suas defensoras e defensores--passam de 60 o numero de mortes registradas tanto em 2016 quanto em 2017. As manifestacoes de rua, nos ultimos anos e principalmente a partir de 2013, ganharam espaco como forma de reacao a continua violacao de direitos pelo Estado. A resposta que se consolidou frente a ocupacao dos espacos publicos foi o acirramento da repressao policial e a atuacao conjunta do Ministerio Publico e do Judiciario na persecucao e criminalizacao dos manifestantes.

As ruas, em 2013, anunciavam um cenario de recrudescimento que se aprofundaria nos anos subsequentes. A apertada reeleicao de Dilma Rousseff em 2014, a consolidacao dos caminhos para o golpe em 2015 e 2016, a assustadora lista de retrocessos acumulados desde o primeiro dia do governo ilegitimo de Michel Temer. Sao esses os percursos que, partindo do simbolico ano de 1968, o presente artigo pretende tracar como forma de abrir a analise para os cenarios que virao nesse pos 2018.

  1. Permanencias da Violencia de Estado

    Tratar das permanencias da violencia do Estado implica abordar questoes estruturais, que constituem o modo de operar da maquina estatal produtora de barbarie, por meio de uma engrenagem institucional que permanece intacta no presente promovendo, a perpetracao de graves violacoes aos direitos humanos. A violencia de Estado nao se restringe a atuacao violenta das policias, mas e exercida pelo sistema de justica como um todo, tendo o Ministerio Publico e o poder judiciario como atores fundamentais. Sao estruturais tambem no sentido de que nao houve ruptura na politica estatal em termos da estrutura de funcionamento das forcas policiais (Zaverucha, 2010), com excecao da extincao formal de departamentos de policia politica e das estruturas dos DOI-Codis (1). Outras agencias menos obvias foram criadas ou estas funcoes sao exercidas de forma diluida nas praticas das forcas de seguranca que seguem, majoritariamente, atuando de forma racista, autoritaria e militarizada. Neste sentido, pode-se afirmar a existencia de uma "politica de exterminio de estado" (Batista, 2012b; D'Elia Filho, 2015), cujo trabalho e dividido entre suas distintas agencias. A politica e determinada e tem sua pratica chancelada pelo poder executivo; as policias militar e civil estao a frente da execucao seja pela acao violenta, seja pela seletividade de investigacao; o Ministerio Publico reforca o modo de operar da policia civil e o poder judiciario ratifica a atuacao de todas as outras agencias estatais (D'Elia Filho, 2015; Alerj, 2016).

    Em "Assassinatos em nome da Lei: uma pratica ideologica do direito penal" (Verani, 1996), Sergio Verani, revela dados sobre casos de autos de resistencia ocorridos na decada 1980. Das quase quarenta ocorrencias acompanhadas, todas terminaram em absolvicao dos reus pelo I Tribunal do Juri a pedido do Ministerio Publico. Ja na pesquisa "Letalidade da acao policial no Rio de Janeiro: a atuacao da Justica Militar', desenvolvida por Ignacio Cano (1998), entre os anos de 1993 e 1996, de 301 inqueritos analisados, 295 foram arquivados pelo judiciario a pedido do promotor. As seis denuncias que viraram processo, nao se referiam a crimes ocorridos em regioes de favelas, e, de toda forma, acabaram resultando na absolvicao dos policiais tambem a pedido dos promotores. O indice de arquivamento das ocorrencias revelado pela pesquisa foi de 98%.

    Em uma pesquisa sobre casos de autos de resistencia ocorridos em 2005, Michel Misse (Misse, et al, 2011) analisou que dos 707 casos ocorridos no estado do Rio de Janeiro foram lavrados 510 autos de registros de ocorrencia (em diversos casos havia mais de uma vitima). Desses, ainda em 2005, apenas 355 inqueritos tinham sido instaurados e ate o ano de 2007 apenas 19 desses inqueritos tinham concluido a passagem pelo Ministerio Publico e chegado ao Tribunal de Justica. Daqueles que chegaram ao judiciario, 16 entraram com pedido de arquivamento pelo Ministerio Publico. Em relacao aos outros tres, dois aguardavam julgamento e um havia resultado em condenacao. Assim, a pesquisa realizada ja nos anos 2000, revelou uma taxa de arquivamento de 99,2%.

    O caso da chacina de Acari, ocorrida em 26 de julho de 1990, e um importante analisador dessa dinamica institucional. O desaparecimento forcado de onze pessoas por um grupo que se identificou como policial, em um sitio em Mage, prescreveu em 2000, sem que o inquerito tivesse sido encaminhado pelo Ministerio Publico ao judiciario com o pedido de instauracao de processo. O setor de inteligencia da Policia Militar chegou a identificar que policiais do 9 Batalhao da Policia Militar e do Departamento de Roubo de Carga da 39 Delegacia da Policia Civil estavam envolvidos no caso. Ainda, no livro Maes de Acari: uma historia de luta contra a impunidade (Nobre, 1994) e relatado que alguns dos responsaveis pela chacina eram integrantes do grupo de exterminio Cavalos Corredores. Essa informacao foi confirmada em testemunhos ouvidos pela Anistia Internacional em pesquisa publicada em 1994 (2). O caso revela desde problemas na realizacao das pericias pelos institutos da policia civil ate uma atuacao negligente do Ministerio Publico enquanto orgao de controle externo da atividade policial.

    Como reacao a omissao do Estado, as maes das vitimas da chacina fundaram o movimento "Maes de Acari" que buscou garantir tanto a visibilidade do caso nacional e internacionalmente, como o levantamento de informacoes para a descoberta do paradeiro de seus filhos e filhas. Em razao da repercussao alcancada pelo grupo e das informacoes que estavam sendo levantadas, Edmeia da Silva Euzebio, mae de Luiz Henrique da Silva Euzebio, uma das vitimas no caso, foi executada a luz do dia, proximo ao metro do Estacio. A denuncia do caso de Edmeia foi aceita pelo judiciario apenas em 2011, dois anos antes do prazo de sua prescricao.

    Desde o final da decada de 1980, constatou-se o crescimento do numero de execucoes atribuidas a esquadroes da morte ou grupos de exterminio (3), assim como a integracao de policiais a estes grupos (Anistia Internacional, 1990). A Human Rights Watch (1993) apontou a identificacao de mais de 180 desses grupos na area da Baixada Fluminense, na regiao metropolitana do Rio de Janeiro. Grupos estes a quem foram atribuidas outras chacinas, como a de Vigario Geral, tambem em 1993. As chacinas executadas por policiais e membros de grupos para-policiais, assim como o cotidiano fenomeno do exterminio policial em areas perifericas ou de favela, sao situacoes exemplares e extremas da politica de exterminio ainda em curso.

    Atualmente, grupos de atuacao similar, em grande parte compostos por integrantes das forcas de seguranca publica do Estado e por politicos, muitas vezes com mandatos em exercicio, recebem a denominacao de milicias. Inicialmente apoiados pela midia e por integrantes do poder publico, por exercerem uma suposta acao de seguranca local frente as violencias do trafico de drogas, esses grupos se fortaleceram e se estabeleceram como verdadeiros proprietarios de determinadas areas do Rio de Janeiro. Essa propriedade era e e mantida, entre outros meios, atraves do controle do fornecimento de servicos essenciais mediante extorsao, de ameacas, da eliminacao tanto da concorrencia quanto de qualquer pessoa que se contraponha ou coloque em risco a hegemonia local dos grupos, do poderio belico de seus integrantes, e da relacao estreita com o poder publico, garantindo, atraves de trocas de interesses, a impunidade necessaria para o crescimento do poder e do lucro desses grupos. Na segunda metade dos anos 2000, frente ao aprofundamento do poder economico e politico das milicias, esses grupos passaram a ser alvo de investigacoes mais contundentes. A Comissao Parlamentar de Inquerito sobre Milicias, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (2008) identificou diversos integrantes desses grupos e no total foram indiciadas mais de 200 pessoas, entre as quais policiais militares, policiais civis, ex- policiais, bombeiros, cabos do exercito, agentes penitenciarios, deputados e vereadores.

    O exterminio cotidiano em areas perifericas ou de favela promovido oficialmente pelo Estado ocorre por meio de incursoes ou operacoes das policias militar e...

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