1984 - Um Marco para a Compreensão do Judiciário Brasileiro

AutorRenato Luiz Miyasato de Faria
Páginas154-167

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Falar o jurídico por meio da literatura libera a interpretação das amarras que lhe são impostas e, a lógica do sistema pode ser relegada em razão de outros conceitos. Saindo do campo da ciência jurídica talvez seja possível uma análise real da conjuntura, do contexto vivido.

Os ritmos, mudanças, formas, substâncias do mundo são retratados nas obras de arte sob um enfoque particular, individual, demonstrando o objeto pela lente do artista; o cognoscível não tem a mesma apresentação para as outras pessoas, a compreensão obedece a diversos critérios, no mais das vezes apenas sensível; isto é, mais uma forma de ver.

As linhas que se seguem não têm o condão de entender o direito por meio da literatura1, em que pese a necessidade e a utilidade desta forma de pensar o jurí-

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dico. Antes, a intenção é ver o direito (no) literato, aquele que pode surgir de um devaneio, com uma licença artística, sem compromisso com os ditames, regramentos, epistemologias2. A fuga do real é necessária todas as vezes que o dia a dia se torna pesado e de difícil leitura; a prosa, a rima, são maneiras de enfrentar a realidade sem se comprometer com os rigorismos. Não trata de se afrontar o status quo, mas de trazer outros elementos para suportar o formalismo do mundo que se pretende coerente das pessoas responsáveis3.

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O mundo jurídico, no seu aspecto de política administrativa judiciária, ou seja, o cerne da administração da justiça, parece buscar uma realidade orweliana. Desperta atenção a importância dada aos procedimentos; todos os fins são precedidos de minuciosa análise do iter; devem ser obedecidos vários ditames que correspondem ao nada, ou seja, preservar o status quo ante, oferecendo a sensação de segurança jurídica, é mais importante que realizá-la concretamente4. Não por outro motivo, apenas e, tão somente, porque até o momento não se identificou o caminho mais eficaz para a plena realização da justiça; se na teoria deve-se dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), quais devem ser os meios aplicáveis na prática é a grande questão...

Estabelecer uma segurança jurídica para a sociedade não é passar pelo regramento excessivo das normas procedimentais; ao contrário, vários são os caminhos matemáticos que partem de um problema para chegar ao mesmo resultado; seja aplicando uma simples regra de três, a fórmula prevista, ou várias outras operações de álgebra, o operador encontra um único produto.

Busca-se, por meio das dezenas de regulamentos internos (tribunais, corregedorias, conselhos), encontrar um disciplinamento que seja geral, para todas as operações jurídicas, e, ao mesmo tempo, individual para que corresponda aos anseios e necessidades das várias regiões geográficas e culturais do nosso país5.

Existe muito a dizer, mas os carimbos..., ah os carimbos!!! As recomendações correicionais proliferam para que os funcionários apertem a almofada e tragam todos eles (em branco, parte em branco, apenas uma parte em branco, só o verso em branco; envio, recebimento e conclusão, recebimento e envio: sempre nesta ordem, nunca transgredida). Tudo sempre tão bem disciplinado, mas para quê? Para que haja necessidade de um fiscal "da sequência" e, a previsão de punição, repita-se: "mas para quê?" Como, quem e de que forma punir? São perguntas com resposta, mas sem finalidade, pois não imprimem ou contribuem para a realização da Justiça6.

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Esqueceram-se de se esquecer das minúcias, devendo, agora, lembrar de se lembrar do pobre e do coitado7, aqueles que buscam a satisfação ou, apenas, o reconhecimento do "direito", seja pela culpa ou pela inocência, não os conhecem. Mas... (sempre ela, a conjunção ‘adversativa’) isso não importa: NÓS (a máquina judicial) estamos aqui para defendê-los, para fazer cumprir a lei, para assegurar o sagrado direito à ampla defesa. Assim, NÓS temos que mostrar-nos a eles para que todas as formalidades (ou, melhor seria dizer: com toda a pompa e circunstância) sejam cumpridas, mostrando que o direito de petição, de ação, aos poderes (que são) públicos atendem precipuamente os pobres e coitados. Passamos a ser os atores jurídicos, o público não mais nos interessa, pois somos o único teatro pa(o)ssível de assistência; a plateia não tem rosto, muito menos importância, sequer carecemos de sua presença8.

Parece que a burocracia judiciária está cada vez mais complexa, o que cria paradoxos9. Ao contrário do que dizem, não existe a família Judiciária. O juiz, sempre tão cioso dos seus e dos deveres, mas (sempre a conjunção adversativa, dificilmente um advérbio de reforço) geralmente encontra-se demasiadamente preocupado consigo e, a rivalizar com os colegas (convocação para a instância superior, número de sentenças, despachos, aulas, congressos, festas, artigos). O órgão

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ministerial, este sim um exemplo de cidadão politicamente correto, todos o clamam; mas buscando a vaga do quinto constitucional e não confiitando com os poderosos, se apequena. O que dizer dos defensores, alguns advogados (ou seria o contrário: os advogados, alguns defensores)? esses são preciosos, seja pela atuação judicial ou pela prejudicial, mas... os interesses são muito diversos e os honorários difíceis. E... os serventuários? tão numerosos, contam-se às centenas de milhares, ciosos no cumprimento dos deveres, mas são tantos os deveres que devem ser cumpridos, que muitas vezes não são cumpridos.

Esta é uma família atípica, em que o pai (se é que existe um) que deveria se preocupar com a assistência econômica e a força física, a mãe cuja função primordial é dar unidade e amparo moral/ético/espiritual, os filhos que buscam caminhar pelas próprias pernas, avós, tios, sobrinhos, primos... Todos eles estão preocupados com outras funções, que visam melhorar sua condição pessoal. O que não é contra o ritmo atual da vida; o problema é o descompasso em que vivem, todos eles, indistintamente, trabalham em completa desarmonia, o que é mais preocupante: uns contra outros.

Busca-se, sempre, o erro do oponente para desferir um golpe certeiro10. Intestinamente, o órgão superior ou revisor quer encontrar o erro/equívoco do julgador de instância inferior, as cortes nacionais querem impor seu conhecimento e sua política judiciária; os magistrados singulares reclamam das decisões superiores. Publicada a decisão, há o manejo dos embargos de declaração e dos recursos/apelações para mostrar o quão errados estavam os prolatores; os posicionamentos sempre equivocados dos postulantes; a má-fé, o abuso do direito, é a busca para castigar aqueles que se socorrem ao Judiciário; e o labor imperfeito sempre mostrado a todos (com o fim de ensinar, com certeza não), no intuito de humilhar para manter o poder de quem manda. Parece que a dialética dos contrários está sempre em tensão e esta é a forma certa de ser11; a complementaridade é um mundo distante e que não pode se misturar à realidade atual12.

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Não bastassem os problemas, questionamentos, vicissitudes internas, fatores externos estão a pretender uma reformulação geral da estrutura judiciária. CPI do Judiciário, Reforma do Judiciário e Extinção da Justiça do Trabalho13 são três assuntos que estiveram na pauta dos últimos anos.

Esses pontos encontram-se entrelaçados, porque representam uma onda, que atingiu este país, durante o segundo governo federal eleito democraticamente, que implementou um pensamento neoliberal na forma de administrar o Estado, nos momentos em que este governante produzia a chamada reforma do Estado (leia-se: privatizações ou desmonte estatal).

As reformas, propriamente ditas, foram antecipadas por uma onda de terror em face das instituições componentes do Judiciário, todos os dias a mídia apresentava casos e casos de mandos e desmandos ocorridos dentro da instituição14. A Justiça

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do Trabalho, segundo apresentada por alguns setores, era a encarnação do atraso ao manietar o capital, que não podia utilizar a mão de obra a seu bel prazer, de forma a torná-la mais "eficiente"15.

Tal situação é emblemática e demonstra, à saciedade, a existência de interesses ocultos naquelas manifestações desfavoráveis à Justiça (leia-se Poder Judiciário)16, que não poderia servir ao projeto de novo Estado que se gestionava no Planalto, por infiuências outras. O Judiciário era o inimigo, as mensagens subliminares eram neste sentido, o que tinha a nítida intenção de fragilizá-lo para imprimir a reforma pretendida. Várias medidas pontuais surgiram17, dentre elas a estruturação de um órgão, em linhas gerais, responsável pela atuação administrativa e deveres funcionais dos juízes18; vê-se que a finalidade primordial não é fazer impor os

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valores antes mencionados19, o que importa dizer é que o surgimento ocorreu em um momento de ebulição política, com nítida crítica externa ao modus operandi do Judiciário nacional.

Três casos serão citados aleatoriamente, sem outro critério científico, para demonstrar a existência de uma tentativa de controle20.

1º Caso21: entidades nacionais de representação da magistratura ingressaram com ação judicial, junto ao Supremo Tribunal Federal, contra ato que impõe ao juiz a obrigatoriedade de informar as razões pelas quais firmou sua suspeição em processo sob sua direção. A petição inicial acredita que foi instituída uma espécie de confessionário; se as partes do processo judicial não têm ciência dos motivos fáticos que impuseram ao condutor do feito seu afastamento (voluntário, diga-se), o devido processo legal não teria sido respeitado, pois uma peça ficou no campo da incógnita.

Mas, o ponto importante a ser debatido neste artigo não diz respeito à juridicidade, à obediência aos comandos constitucionais, ou qualquer outra seara do Direito e, sim: porque o órgão corregedor tem que ter conhecimento daqueles fatos22? Seria para saber das entranhas psíquicas de seus "subordinados", quais suas deficiências, incompletudes ou desvios mentais, ou, apenas, os "segredos de...

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