Witchcraft in Curitiba's village: law and misogyny (xviii)/Feiticaria na vila de Curitiba: direito e misoginia (xviii).

Autorde Araujo, Danielle Regina Wobeto
  1. Consideracoes iniciais

    A atual popularidade da "caca as bruxas", ocorrida na epoca moderna, e tributaria do movimento feminista norte-americano, do final da decada de 1970, que inclusive adotou as bruxas como mascotes relacionando feministas e mulheres perseguidas (muitas vezes, pelo simples fato de terem nascido mulher).

    Acrescentamos ainda que tal visibilidade tambem e fruto de teorias desenvolvidas na academia, como a teoria do genero de Joan Scott. (1992, p. 63-96). Essa assertiva pode soar banal. Mas ate a chegada das mulheres--alunas e professoras--nas universidades na decada de 30, elas eram (quando eram) instrumento de estudo dos homens. Compreendendo, mas nao justificando, sua invisibilidade na historia, elas comecaram um processo de resgate do passado, de compreensao do presente e de proposicao do futuro.

    Talvez em razao disso, questoes que envolvam igualdade de genero, pauta da luta feminista, ainda incomodam. O vergonhoso e triste episodio da queima de uma efigie de Judith Butler (2017), que conferenciava em Sao Paulo, provocou a filosofa queer a comentar o fato. Nessa oportunidade, ressaltou que o fantasma das feiticeiras diabolicas (mulheres cujas crencas nao se enquadravam nos dogmas aceitos pelas Igrejas) reverbera numa compreensao equivocada da "ideologia de genero", por conservadores ressentidos com a autonomia das mulheres.

    Nao obstante, a producao historiografica acerca da "caca as bruxas" e vastissima e plural, produzida por historiadores e historiadoras, desde o seculo XIX. Jules Michelet (1992), em "A feiticeira", foi o primeiro historiador a afirmar que tal fenomeno, em realidade, foi uma caca as mulheres e que as feiticeiras nao passavam de vitimas da sociedade do Antigo Regime. Efetivamente, os numeros apresentados por diversos historiadores apontam que as mulheres foram as principais vitimas da caca promovida por instituicoes repressoras das Coroas e Igrejas (SALLMANN, 2009, p. 456; DELUMEAU, 2009, p.545).

    Apesar disso, a rememoracao desses fatos nao raro e anacronica, excludente ou determinista. Primeiro, porque pautada em instituicoes e valores que tomam a "caca as bruxas" como algo unico e universal no tempo, o que leva a falsas impressoes, como a ideia de que a perseguicao foi mais intensa na Idade Media do que na Moderna. Segundo, porque desconsideram as particularidades do fenomeno nos mais diversos paises e continentes. Portugal, por exemplo, nao teve uma intensa "caca as bruxas". Por fim, porque a perseguicao foi multifatorial, decorreu de questoes culturais, sociais, economicas, mas tambem da condicao de se nascer mulher em um espaco/tempo onde a misoginia estruturava "naturalmente" as relacoes sociais. (PAIVA, 1992, p. 33-35).

    Como ja se pode vislumbrar, a complexidade do assunto exige que sejam retomadas suas principais caracteristicas e seus fatores desencadeadores--especialmente a misoginia, e a sua representacao na America Portuguesa. Essa tarefa sera retomada a partir de um processo criminal da segunda metade do seculo XVIII, tramitado na justica secular ordinaria da Vila de Curitiba e cujo objetivo era a investigacao de um caso de "feiticaria por maleficio" (1).

    Por derradeiro, antes de ingressar especificamente na relacao entre feiticaria e mulheres, convem esclarecer que empregamos a expressao "caca as bruxas" ao referir a perseguicao intensa e difusa na Epoca Moderna. Ja o termo feiticaria sera utilizado porque assim consta nas Ordenacoes Filipinas, nas Constituicoes de Arcebispados, nos Regulamentos da Inquisicao e na doutrina portuguesa. Em Portugal, por sinal, o termo oscilou na producao cientifica tanto da Epoca Contemporanea como da Moderna em todos os estratos sociais (BETHENCOURT, 2004, p. 50-54).

    Tambem optamos pelo amplo sentido do termo feiticaria, para o qual nao importa a qualidade do ato--como fazem os ingleses: seja por uma condicao inerente de seu agente (bruxaria) ou por se utilizar de tecnicas e mecanismos (feiticaria). (THOMAS, 1991, p. 376.). Nem usa a distincao antropologica inglesa que faz distincoes entre bruxas (witchcraft: envolve pacto com o demonio, voo noturno e saba) e feiticeiras (sorcery: cobre um conjunto de tecnicas e ritos magicos que se inserem no espaco cotidiano) (EVANS-PRITCHARD, 2004). Portanto, a compreensao da feiticaria nao se restringe a ideia teologica das feiticeiras, como agentes representantes e adoradoras do Diabo, circulante nas elites: ela abrange tambem as supersticoes e a nocao popular das praticas magicas. Isto porque foi predominantemente nesse sentido que a perseguicao se deu em Portugal (BETHENCOURT, 2004. p. 50-54).

    Posta a problematica e feitas as consideracoes preliminares, o percurso a ser trilhado sera o seguinte: a) apontamentos gerais acerca de alguns fatores que desencadearam "caca as bruxas"; b) analise do fator misoginia: suas premissas e consequencias; c) sintese do fenomeno em Portugal e no Brasil, destacando suas especificidades; d) apresentacao das feiticeiras processadas na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinheirais de Curitiba, na segunda metade do seculo XVIII.

  2. "Caca as bruxas": apontamentos gerais

    A "caca as bruxas" foi um fenomeno ocorrido em grande parte da Europa durante a Epoca Moderna. Enquanto o apice da perseguicao se deu nos seculos XVI e XVII, o seu declinio comecou no curso do seculo XVIII. (2)

    Os historiadores que se debrucam sobre o tema, cada qual com sua abordagem e metodologia, registram alguns fatores que tornavam factiveis a crenca e a perseguicao. Nao fugindo das caracteristicas que marcam cada corrente, pode-se dizer que a historiografia francesa destacou as mentalidades e alta cultura; a inglesa, encampou uma analise funcional social; e, a italiana, dentro de ideia de circularidade cultural, ressaltou o impacto das crencas, mitos e ritos no imaginario da sociedade moderna, como fatores que desembocaram no fenomeno da "caca as bruxas". A historiografia brasileira tambem examinou a questao e direcionou a pesquisa para os efeitos na Colonia. Para Laura de Mello e Souza (2009, p. 208), na encruzilhada dos niveis culturais diferentes, a feiticaria se sobressai como objeto de estudo por mostrar que foi uma forma de ajuste do colono ao meio, ressaltando seu potencial elucidativo para compreender o Brasil colonial.

    Um primeiro fator e a mentalidade magica existente na Modernidade. A proposta neoplatonista facilitava compreensao do universo pela representacao. Essa ultima escola de filosofia paga antiga e caracterizada pela tendencia de apagar a diferenca entre espirito e materia, aceitando todas as historias, inclusive as mais absurdas, para depois procurar explicacoes. Assim, em uma outra epistemologia, que nao colocava os fatos a prova (demonstracao), o universo era representado, pela elite letrada, como um "complexo animado de espacos e elementos no qual sobressai o ceu, a terra, a agua, e o empireo (residencia de deus e dos santos exterior a superficie celeste)." Nesse compasso, "o mundo superior (o ceu) estaria ligado ao mundo inferior (a terra) por um tecido de correspondencias secretas, de simpatias e aversoes ocultas, no qual os astros desempenham um papel fundamental" (BETHENCOURT, 2004, p. 142).

    Esse quadro de fluidez, bastante distante da filosofia mecanicista, fazia com que a sociedade se sentisse vulneravel, enquanto o homem, que a integrava, se via extremamente dependente da sua relacao com o cosmos/natureza (GROSSI, 2014, p. 93-98). Diz-se, por isso, que a relacao do homem com o universo era negociada: negociava-se com os espiritos que o povoavam e o animavam, os quais podiam ser divinos, satanicos ou as almas dos mortos (FOUCAULT, 2010, p. 46). Havia especialistas para mediar o ato, sendo capazes de desvendar, controlar e alterar as mensagens cosmicas. Entre eles, as feiticeiras, agentes intermediarias com capacidade de "compreender, penetrar e inflectir o complicado jogo de forcas ocultas que se faz sentir tanto no nivel horizontal (entre os homens), como no vertical (entre os homens e o universo)" (BETHENCOURT, 2004, p.163).

    Para tanto, as feiticeiras lancavam mao das leis da magia, as quais amparavam o aparato cognitivo do homem moderno: (a) similitude, (b) contraste (ou contrariedade), (c) contato e; (d) contiguidade. A primeira lei (a) consistia na ideia de que o semelhante evoca/produz o semelhante, o qual era convencional--a associacao entre duas coisas era o resultado de uma convencao assumida pelo magico, anterior a pratica e que poderia sofrer atualizacoes. A segunda (b) era o inverso da similitude: coisas diferentes ou contrarias se repeliam, motivo pelo qual muitos rituais eram executados por meio de operacoes invertidas. O terceiro principio (c), por sua vez, tornava admissivel que objetos que estiveram em contato estavam e permaneceriam unidos eternamente. Por fim, a quarta (d) era capaz de esclarecer como uma parte equivalia ao todo (PAIVA, 2002, p. 132). A partir dessa mentalidade magica, e mais perceptivel que as ideias em torno do Diabo ajudaram a desencadear a "caca as bruxas". O "satanismo" ou "demonismo" foram ideias desenvolvidas pela elite crista letrada e adotadas por diversas autoridades eclesiasticas e judiciarias, em um ambiente de medo e conflitos sociais.

    Segundo Keith Thomas (1991, p. 357), a nocao de maleficium existia desde a antiguidade: uma "atribuicao do infortunio a um agente humano oculto". No seculo XIV, essa ideia predomina com vinculacao ao Diabo. As feiticeiras, entao, deveriam ser processadas: nao por fazerem atos maleficos, mas por acreditarem e reverenciarem o Deus errado--dai o carater heretico do delito. E justamente em torno dessa concepcao diabolica que foi concebida a nocao de saba.

    Ao realizar o nexo entre magia e satanismo, a elite crista diabolizou as praticas magicas, o que alterou o conceito de feiticaria. Todos aqueles que as executavam se tornaram hereges e apostatas; nao havia mais magia que fosse natural (branca), mas somente diabolica (negra). O mesmo entendimento foi conferido as...

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