Weimar... e entao? Uma breve apresentacao ao texto de Otto Kirchheimer.

AutorTavolari, Bianca

Neste ano comemoram-se os cem anos da promulgacao da Constituicao de Weimar. No plano da historia constitucional, Weimar e lembrada, ao lado da Carta Mexicana de 1917, como uma das primeiras experiencias que abriram caminho para um direito eminentemente social. Isto quer dizer que o texto da Constituicao de Weimar reconhece desigualdades sociais estruturantes, especialmente entre trabalhadores e empregadores, e propoe maneiras institucionais de corrigir estas assimetrias, trazendo a igualdade material para o primeiro plano. Foi a Constituicao da primeira democracia alema, que marcou o fim de um imperio monarquista. Teve origem na revolucao de novembro de 1918, iniciada com um motim de marinheiros em Kiel, espalhando levantes de trabalhadores e soldados que voltavam do front por um sem-numero de cidades na Alemanha.

E, no entanto, Weimar... e entao?, publicado em 1930 por Otto Kirchheimer, e um ataque frontal a esta Constituicao. (1) Nao porque Kirchheimer fosse contrario as reivindicacoes dos trabalhadores ou mesmo contra a revolucao. Neste texto, ele apresenta razoes para defender que a Constituicao de Weimar deveria ser entendida como um bloqueio a efetivacao de qualquer mudanca social transformadora. Em sua visao, a Constituicao de Weimar--entendida como uma "serva dos poderosos de ocasiao" (2)--teria que ser superada para que a luta dos trabalhadores pudesse ser de fato reconhecida para alem de um ambito estritamente formal. E uma tese bastante forte. E, para alem das comemoracoes em torno do centenario, mostra que os sentidos e os limites desta experiencia democratica estavam em disputa, ja na propria epoca, mesmo entre os juristas criticos vinculados a social-democracia. (3)

O argumento mais famoso de Weimar... e entao? e o de que nao haveria uma decisao politica subjacente a Constituicao de Weimar, caracterizando-a, portanto, como uma "Constituicao sem decisao". Nesta breve apresentacao a traducao para o portugues, gostaria de explorar alguns pontos importantes para entendermos esta tese para alem de uma simples influencia do decisionismo de Carl Schmitt. (4)

  1. A troca de funcao da ideia de Estado de direito e o equilibrio temporario da luta de classes

    Em seus primeiros textos do periodo de Weimar, especialmente em Sobre a teoria do Estado do socialismo e do bolchevismo e em Mudanca de significado do parlamentarismo (5), ambos publicados em 1928, Kirchheimer delineia a tese de que a ideia de Estado de direito teria passado por uma profunda troca de funcao. O ponto de clivagem que organiza esta mudanca, estabelecendo um "antes" e um "depois", e formado por um conjunto de transformacoes estruturais, composto pelo inicio da Primeira Guerra, a perda de legitimidade da monarquia e a conquista da democracia. Para Kirchheimer, antes deste limiar, a ideia de Estado de direito servia como arma para uma classe especifica. A burguesia se valia deste instrumento para limitar ao maximo os poderes da nobreza e para garantir seguranca e previsibilidade em suas transacoes comerciais. Quando a classe trabalhadora irrompe com demandas democraticas, a ideia de Estado de direito deixa de ser o meio de luta exclusivo das "camadas de posse e formacao". Mas a ideia nao troca simplesmente de sinal, ou seja, nao passa a ser um instrumento da classe operaria em detrimento da burguesia, trocando meramente de maos. Ela deixa de ser arma de qualquer uma das classes para organizar um campo de disputa numa sociedade dividida. E por isso que Kirchheimer fala em troca de funcao.

    Kirchheimer usa, por diversas vezes, a imagem da linha divisoria para caracterizar a nova funcao da ideia de Estado de direito. Em Mudanca de significado do parlamentarismo, a tese e apresentada assim:

    Na verdade, a ideia de Estado de direito ganhou hoje um sentido completamente diferente. Ela nao e mais uma posicao que pertence exclusivamente a burguesia, nem uma posicao de ataque, como em seu periodo inicial, nem uma posicao de defesa, como em seu periodo tardio. Hoje, a ideia de Estado de direito esta situada entre proletariado e burguesia. Ela se tornou a linha divisoria de dois grupos em luta, da qual ambos estao bastante distantes para sentir que ela seria a lei definitiva para a distribuicao de poder. (6) Assim, por mais que a ideia de Estado de direito passe a organizar a arena do conflito, passando a figurar entre as duas classes, elas nao a reconhecem como criterio ultimo, como o solo legitimo da resolucao das disputas de poder. Para Kirchheimer, este e o cenario de uma oposicao aguda entre duas classes em um estado de tensao que nao se resolve, ja que, no quadro da democracia que incorporou uma parte dos trabalhadores ao poder, especialmente na coalizao de governo e nas cadeiras do parlamento, nenhuma classe e poderosa o suficiente para subjugar a outra, mas apenas para vetar iniciativas contrarias. Assim, a correlacao de forcas especifica da democracia de Weimar instaura uma paralisia agonizante, uma guerra de trincheiras em que cada grupo finca suas bandeiras sem alcancar acordos duradouros. Esta tese do equilibrio temporario da luta de classes havia sido formulada por Otto Bauer para tentar explicar o imobilismo que se sucedeu a chegada da social-democracia austriaca ao poder na mesma epoca. (7) Mas se a tese de Bauer estava restrita ao legislativo e ao executivo, Kirchheimer pretende entender como o direito atua nesta correlacao de forcas.

    No diagnostico de Sobre a teoria do socialismo e do bolchevismo, o direito desempenha um papel fundamental para manter este equilibrio. Ambas as classes vao lutar para inscrever seus valores e projetos na lei e no texto constitucional, vao usar o direito como meio de assegurar que seus valores proprios e conflitantes entre si estejam de alguma maneira institucionalizados e que passem a fazer parte das regras do jogo, na tentativa de fazer a correlacao de forcas pender para um dos lados da contenda. No entanto, como os grupos sociais em conflito atuam exatamente da mesma maneira, a Constituicao passa a ser um reflexo desta disputa ferrenha. Assim, o direito funciona para manter a paralisia, mas em outro patamar: a forma da lei garante maior estabilidade para esta oposicao aguda. Alem disso, esta dinamica faz com que as decisoes politicas sejam deslocadas para o ambito do direito, um movimento de juridificacao (Verrechtlichung) que Kirchheimer vai...

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