Vulnerabilidade social e o programa Hospital-dia: uma discussão sobre as políticas públicas em saúde mental

AutorNeusa Guareschi/Anita Bernardes/Tamara Oliven/Andrei Weber
CargoPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Páginas300-316

Neusa Guareschi1

    Social vulnerability and day hospital programs: a discussion over the public policies in mental health

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A reforma psiquiátrica e o Hospital-dia

De acordo com Foucault (1995a), o hospital, antes do século XVIII, era uma instituição de assistência aos pobres - de assistência, mas também de separação e exclusão, pois existia tanto para recolher os ditos pobres quanto para proteger os outros, cidadãos de bem, do perigo que aqueles encarnavam. O personagem ideal do hospital não era o doente que necessitava de cura, mas o pobre que estava morrendo, alguém que deveria ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deveriam dar os últimos cuidados e o último sacramento. Ainda segundo Foucault (1984b, p.83), nos asilos da época de Pinel, a medicalização não representava espaço social de exclusão, mas "a confusão no interior de um regime moral único cujas técnicas tinham algumas um caráter de precaução social e outras um caráter de estratégia médica".

A partir do século XIX, ocorreu um aperfeiçoamento do caráter puramente assistencialista dos hospitais, quando a loucura começou a ser associada à alma humana, inscrevendo-se na dimensão da interioridade do sujeito e recebendo, pela primeira vez no mundo ocidental, status, estrutura e significação psicológica. Foi também inserida em um sistema de valores e repressões morais (FOUCAULT, 1984b). Assim, o hospital não existiu com o objetivo primeiro de medicalizar para curar, mas sim de resguardar a cidade de possíveis efeitos nocivos, como, por exemplo, a desordem que essas pessoas poderiam trazer. Assim, era um tipo de hospitalização que não servia como instrumento de cura, mas para impedir que pudesse se instalar um foco de desordem econômica e social. Desse modo, a formação de uma medicina hospitalar deve-se, por um lado, à disciplinarização do espaço hospitalar (FOUCAULT, 1995b) e, por outro, à transformação do saber e da prática médica.

Com isso, houve mudança no sistema de relações de poder no interior do hospital. Sob a dependência da administração eclesiástica e dirigido até então por pessoas religiosas, que tentavam assegurar a vida cotidiana do hospital, a salvação e a alimentação das pessoas internadas, sendo o médico chamado para os momentos de crise, o hospital adquiriu outro caráter.

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Ele passou a ser considerado tanto instrumento de cura quanto instrumento terapêutico, e o médico tornou-se o principal responsável pela organização hospitalar.

No entanto, mesmo estando a administração hospitalar sob o domínio médico, até o século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada, pois era mais considerada conseqüência de decepções ou estados de ilusão. A natureza, geralmente, era o lugar reconhecido como terapêutico. As prescrições médicas indicavam viagens, repouso, passeios ou retiros. A prática do internamento, no começo do século XIX, coincidiu com o momento em que a loucura passou a ser relacionada àquilo que se diferenciava da conduta humana entendida como regular e normal, ou seja, desordens na maneira de agir, de querer, de sentir, de tomar decisões e de ser livre são associadas à loucura.

Com esse tratamento inicial dado à loucura, o asilo ou "a casa dos loucos" teria, em um primeiro momento, não papel de curar, mas de permitir a descoberta de uma verdade sobre a causa da doença mental. Além de ser um possível lugar de desvelamento, o asilo seria também um lugar de confronto ou, nas palavras de Foucault (1995a, p.122): "[...] o hospital psiquiátrico do século XIX: lugar de diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta".

Entretanto, no fim do século XIX, emergiu um movimento de "despsiquiatrização", na tentativa de anular o poder do médico e de deslocá-lo de um saber mais exato para outras práticas e medidas. No cerne da luta da antipsiquiatria, está um combate contra a instituição, mas que também vem de dentro dela. A antipsiquiatria pretende dar ao indivíduo a tarefa e o direito de realizar sua loucura, levando-a até o fim, em uma experiência para a qual a psiquiatria pode contribuir, porém, jamais em nome de um poder que lhe seria conferido pela capacidade de buscar a razão ou a normalidade.

O Brasil foi adepto desse processo de reforma psiquiátrica durante os anos da ditadura. Entretanto, assim como a loucura, que já vinha sendo silenciada, especialmente pelos internamentos, o cenário político de repressão do país fez com que os movimentos de transformação das políticas públicas relacionadas à doença mental também fossem calados. Esses movimentos somente tiveram voz novamente na década de 1980, alinhados então às novas políticas de saúde pública e, em especial, engajados com as discussões do movimento da reforma psiquiátrica. Esse movimento iniciou-se em 1986,

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data da 8a. Conferência Nacional de Saúde, em que se edificaram novos discursos sobre a concepção de saúde, que passou a ser falada como um processo resultante das condições de vida, não figurando mais como ausência de doença.

Com a Conferência Nacional de Saúde de 1986 e com a 1a. Conferência Nacional de Saúde Mental e Política de Atenção Integral à Saúde Mental, começou a reorganização da rede de saúde pública, na busca por garantir maiores investimentos a partir da aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica, o que ocorreu em 1992, no Estado do Rio Grande do Sul2, calcada na idéia "da saúde como direito do cidadão e dever do Estado" (OLIVEIRA; SALDANHA, 1993, p.41).

A reforma psiquiátrica é um movimento que prega a transformação de modelos assistenciais em saúde, por meio de uma reformulação do estatuto social da loucura, propondo a desinstitucionalização da doença mental. Isso não significa que os tratamentos devam se extinguir, ao contrário, o que se busca são alternativas clínicas, institucionais e de cuidados para com os usuários (PELLICCIOLI; GUARESCHI, 2004).

Assim, a reforma psiquiátrica consiste

[...] na gradativa substituição do sistema hospitalocêntrico de cuidados às pessoas que padecem de sofrimento psíquico por uma rede integrada e variados serviços assistenciais de atenção sanitária e social, tais como: centros comunitários, centros de atenção psicossocial, centros residenciais de cuidados intensivos, lares abrigados, pensões públicas comunitárias, oficinas de atividades construtivas e similares (RIO GRANDE DO SUL, 1992, Art. 2º).

A reforma psiquiátrica entra na esteira das modificações da atenção à saúde e do próprio conceito de saúde, à medida que problematiza não apenas o modelo de hospitalização, mas também as formas instituídas de loucura e sofrimento psíquico.

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Aqui, faz-se importante discutir o conceito de desinstitucionalização. Esse conceito é fundamental para o projeto da reforma psiquiátrica, pois nele institui-se um elemento construtivo e, ao mesmo tempo, reformulador. É importante ressaltar que a desinstitucionalização não deve ser confundida com a desospitalização, entendida como uma desconstrução dos modelos manicomiais tradicionais, em que o usuário é quem comunica sua queixa, fazendo desse processo um espaço de escuta em que é privilegiada a palavra do usuário. Quando o usuário faz uso da palavra, encontra novas formas de resolução de seus conflitos, a partir da possibilidade que se oferece para novas leituras de organização e significação de sua vida. A desinstitucionalização segue um caminho oposto às práticas psiquiátricas clássicas, em que o médico examina os sintomas, a partir de sua abstração, para catalogá-los e caracterizá-los. Ao contrário disso, a desinstitucionalização toma o usuário como cidadão com ação e poder de participação, vê-o como capaz de verbalizar seus sentimentos e tentar entendê-los a partir de sua própria abstração. Isso significa desconstrução de determinada instituição que, a partir dela e sobre ela, comporta uma série de estigmas que são colados naqueles que têm subjetividade considerada louca (PELLICCIOLI; GUARESCHI, 2004).

O Hospital-dia é um programa que se constituiu a partir do movimento da reforma psiquiátrica e busca dar outro enfoque ao sofrimento psíquico, por meio de uma clínica que, em uma dimensão transdisciplinar, leva também em consideração as questões éticas, sociais, culturais e políticas que transcendem a prática psiquiátrica e a medicalização. O programa Hospital-dia, dentro do Sistema Único de Saúde, é uma das propostas para outro agenciamento social da loucura, distinto do modelo da cultura manicomial com práticas em saúde que podem levar à condição de exclusão e de estigma social.

Com a proposta do programa do Hospital-dia, começam a ser discutidas atividades de...

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