Vulnerabilidade e Exploração: Considerações sobre as Relações entre o Imigrante e o Trabalho em Condição Análoga à de Escravo

AutorDaniel Bertolucci Torres
Ocupação do AutorMestrando em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Páginas117-132

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Introdução

O ato de se deparar nos dias de hoje com fatos que remetem a comportamentos humanos totalmente defasados e, há muito tempo, pelo menos do ponto de vista cognitivo, pacificamente aceitos enquanto desumanos e condenáveis, é capaz de nos incitar uma estranheza: é esta a sociedade em que habito?

Tão degradante quanto as guerras, que parecem ainda ser o paradigma de consciências humanas perturbadas, como é possível nos depararmos com a exploração de mão de obra em condição análoga à de escravo? É como se pudesse admitir a instalação de uma senzala no quintal de casa em pleno século XXI.

Tema de interesse público, a exploração da mão de obra em condição análoga à de escravo e outras formas de trabalho forçado é matéria prioritária em termos de violações de direitos humanos da perspectiva do Direito do Trabalho. Dessa maneira, os fenômenos da globalização e a maneira de operar do capitalismo, uma das causas da intensificação dos fluxos migratórios, tornam prioritária, na agenda da advocacy, a questão dos imigrantes atrelada às condições de trabalhos forçados.

Nesses termos, na medida em que se fala de trabalho em condição análoga à de escravo, é de boa praxe se perguntar quem são as suas vítimas. No entanto, de uma outra perspectiva, outra pergunta bastante pertinente é de como e por que ocorre, nos dias atuais, a subsistência da oferta de postos de trabalho que tenham como pressuposto a exploração de mão de obra em condição análoga à de escravo? Isto é, da perspectiva do mercado, por que a mão de obra em condição análoga à escravidão ainda mantém um lugar na divisão social do trabalho? Se é que se pode dizer que há um lugar para ela. Todavia, se existe, é porque vem suprir uma demanda do mercado: se há algum tipo de exploração nesse sentido, é porque ela traz benefícios para alguém em algum ponto da cadeia produtiva do mercado econômico.

O presente artigo, refere-se, desse modo, a uma abordagem que parte de dois polos, qual seja: o da suscetibilidade de ser explorado e o da oferta da exploração. Por um lado, há o imigrante em situação de vulnerabilidade e é suscetível à exploração. Do outro, há um sistema em que todo o seu fundamento se ergueu sobre bases que exigem que esse tipo de exploração ocorra, caso contrário não se sustentaria. Há, portanto, um mercado em que os produtos mudam completamente em questões de meses, no qual há uma enorme variedade e quantidade de bens a serem comer-cializados, com os prazos de produção cada vez mais apertados. Aliado a isso, há uma grande necessidade de oferecer produtos a preços cada vez mais baixos em um mercado hipercompetitivo e em um contexto típico do capitalismo avassalador.

Diante disso, este artigo divide-se em três principais eixos que correspondem cada qual a uma pergunta-chave: (i) o que é a condição de vulnerabilidade do imigrante?; (ii) em qual contexto se pode definir o

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trabalho em condição análoga à de escravo? e; (iii) finalmente, por que subsistem condições propícias para o imigrante ser explorado no mercado de trabalho?

Para tanto, vale estudar primeiramente a que tipo de vulnerabilidade está se tratando quando se quer delimitar o perfil do imigrante suscetível à exploração de sua mão de obra, tanto da perspectiva jurídica (sujeito de direito), quanto por lentes complementares. Em seguida, trata-se de compreender a que se refere esse trabalho em condição análoga à de escravo, e quais são suas implicações no contexto mundial e brasileiro. Para, finalmente, apresentar as causas mantenedoras da subsistência do binômio imigrante-exploração.

Assim, essa abordagem contempla, metodologicamente, a junção de dois polos: os vulneráveis ao trabalho em condição análoga à de escravo e os beneficiários desse tipo de exploração, pois se há a oferta há também a demanda, princípio este básico do mercado capitalista, a lei da oferta e da procura. Dito isso, o objetivo principal do presente trabalho é o de construir um argumento capaz de responsabilizar os verdadeiros beneficiários e estimuladores da exploração da mão de obra imigrante, especialmente a partir da condição de trabalho análoga à escravidão.

1. Imigração e vulnerabilidade

O conceito de vulnerabilidade é uma ideia inerente aos direitos humanos. Trata-se de identificar indivíduos e grupos sociais específicos com base em premissas a partir das quais seja possível constatar aspectos de fragilidade e, por isso, da necessidade maior de proteção. Na prática, a ideia é bastante subjetiva, ficando a critério do responsável pela proteção a caracterização da eventual situação de vulnerabilidade.

É relevante notar que o grau de apreciação do agente encarregado em direcionar maior nível de proteção aos indivíduos ou grupos em questão, é passível de ser maculado em função dos diferentes valores morais que cada consciência porta dentro de si. Por outro lado, a apreensão consistente de um conceito de vulnerabilidade é capaz de expor situações emergenciais nas quais haja grande iminência e/ou casos de graves violações de direitos humanos, direcionando esforços eficientes para a sua proteção.

Tendo em vista a temática do presente trabalho, torna-se importante a apresentação minimamente delimitada da ideia de vulnerabilidade. Assim, pretende-se facilitar a compreensão da gravidade dos abusos por parte dos exploradores de mão de obra vulnerável e, em paralelo, trazer à tona o debate da necessidade de marcos mais efetivos, no que concerne à proteção dos direitos humanos dos imigrantes.

Embora a vulnerabilidade não seja uma condição inerente somente aos imigrantes, e, diga-se de passagem, que nem todo imigrante está necessariamente em situação de vulnerabilidade, o fato de estar fora de seu território natal e apartado das suas referências sociais é capaz de potencializar a eventual gravidade da condição em que se encontra.

Jorge Bustamante (2002), sociólogo mexicano e especialista na temática do fenômeno das migrações internacionais, em trabalho empírico apresentado no periódico International Migrant Review, enviou um questionário de quatro questões a várias organizações (governamentais, intergovernamentais e não governamentais), no qual trata a temática do fenômeno das imigrações. Na análise qualitativa dos dados, a metodologia, detalhada por Bustamante, tratou de dar uma leitura das respostas a partir de um quadro conceitual de referências tendo em vista uma premissa básica: a vulnerabilidade dos imigrantes enquanto sujeitos de direitos humanos.

Segundo o sociólogo mexicano, a vulnerabilidade pode ser tanto de natureza estrutural, como também, cultural. Da perspectiva estrutural, a vulnerabilidade deriva da estrutura do poder que se concretiza empiricamente em qualquer sociedade, onde sempre have-rá aqueles com mais poderes que os outros. Quanto à perspectiva cultural, é resultado da conjunção de diversos aspectos, dentre eles: estereótipos, preconceitos, racismo, xenofobia, ignorância e discriminação institucional. Para Bustamante, a natureza cultural da vulnerabilidade contribui, sobremaneira, ao estabelecimento daquela estrutura de diferenças de poderes entre nacionais e imigrantes, sendo imposta a estes por aqueles.

Há, nesse sentido, uma configuração de um contexto de impunidade, enquanto a ausência de consequências de natureza sancionatória de bases econômicas, sociais ou políticas diante dos casos de violações de direitos humanos dos imigrantes, pois, conforme pontua Bustamante, eles estão em um nível socialmente inferior.

Diante da intrínseca relação entre a vulnerabilidade do imigrante e a impunidade dos responsáveis pelas violações de seus direitos humanos, o presente artigo salienta seu objetivo no que concerne à responsabilização dos principais mandantes pela exploração da mão de obra de imigrantes em situação de vulnerabilidade. Todavia, ainda é necessário aprofundar na temática da vulnerabilidade.

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1.1. Vulnerabilidade, impotência e exploração: a condição do imigrante enquanto sujeito de direito

É de fácil percepção a natureza múltipla da ideia de vulnerabilidade. Na literatura não são raras as vezes em que se encontram a utilização desse conceito em abordagens de variadas disciplinas. No entanto, seja do ponto de vista da medicina, da educação, da sociologia, da psicologia ou dos direitos humanos, a vulnerabili-dade se refere ao estado ou qualidade daquele que é vulnerável, isto é, que denota a facilidade em ser atacado, explorado, atingido, ferido, ofendido e violado. Enquanto fragilidade, a situação de vulnerabilidade caracteriza o quebradiço, o debilitado, o precário e o suscetível de cair (HOUAISS, 2009).

Entretanto, mesmo diante de um termo aparentemente compreensível do ponto de vista semântico e gramatical, sob as lentes dos direitos humanos é necessário se fazer um aprofundamento conceitual tendo como foco a proteção da pessoa humana. Especificamente, as abordagens trazidas adiante circundam em torno da questão da impotência do imigrante, o qual carece de proteção normativa efetiva e que, por isso, é posto em patamar inferior ao nacional em se tratando da sua condição de sujeito de direito.

1.1.1. Paul Ricoeur e o paradoxo da autonomia e vulnerabilidade

Do ponto de vista do sujeito de direito, Paul Ricoeur (2008)...

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