A visão jurídica da empresa na realidade brasileira atual

AutorMarcos Paulo de Almeida Salles
Páginas94-108

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Ver Nota1

Recordo-me ainda dos ensinamentos do professor Philomeno Costa2 quando ele lembrava que "o mérito que se deve atribuir a Stracca é sobretudo o de ter cuidado da mercancia e do mercador em face das verdadeiras necessidades do comércio ou das novas relações jurídicas ou renovadas, que escapavam dos limites restritos do Corpus Júris; este era na época a fonte principal do Direito; era a lei viva vigorante juntamente com leis particulares; os doutores raciocinam e os tribunais decidem em função daquele, onde tudo se deve achar, embora sem a mesma premência anterior da época do predomínio da glosa, em que cada palavra se confirmava com um texto romano e cada expressão com uma lex, para que se venha a entender da necessidade que tiveram os jurisconsultores da época em que começaram a declinar as utilidades mercantis da Idade Média até ao ingresso no século XVI. Foi assim que Benvenuto Stracca, em 1553, publicou o seu Tractatus de Mercatura seu Merca-tore".

Para que se possa compreender o peso que há de ter este ponto da história do Direito Comercial, é sempre bom lembrar que se pode dividi-la em quatro fases, didatica-mente assim dispostas: 1) fase primitiva; 2) fase corporativa; 3) fase do ato de comércio; 4) fase da empresa. Com estes quatro capítulos se pode, ainda que a voo de pássaro, compreender as transições por que veio passando a criatividade dos praticantes do ato satisfativo das necessidades dos homens. Segundo J. X. Carvalho de Mendonça3 há três grandes épocas na história do comércio que vêm classificar os períodos da história do Direito Comercial - Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos -, demonstrando, assim, que foi da evolução da prática comercial que nasceu a sis-tematizaçãp legisladora das mesmas, que

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viveu apoiada nos costumes até após a Revolução Francesa, quando passou a integrar o Código Napòleônico de 1807.

Agrada-me neste momento abeberar-me nos escritos sempre atuais do professor Waldemar Ferreira,4 que dá abertura ao seu Curso, àquela década, lembrando que "existe o Direito Commercial desde que o commercio fez sua aparição no mundo. E o commercio é coetâneo das primeiras relações pacíficas entre os homens dos primitivos grupos sociais, ao convencerem-se de que um. homem não é naturalmente inimigo um do outro, podendo um ser auxiliar do outro e todos cooperadores efficacis-simos da obra económica em que se empenham"; valendo dizer que aquela que denominamos fase primitiva tem início neste estado de congráçamento social em que apenas se pode vislumbrar a figura do escambo de produtos excedentes, sem armazenamento daqueles perecíveis pela sua própria apropriação à natureza, lembrando, ainda com Waldemar Ferreira, que "diffe-renças, que na ordem económica se manifestaram pelo desenvolvimento de indústrias diversas e produções distinctas, fizeram surgir, naturalmente, a ideia da troca dos productos que em commercio, propriamente, se transformou quando, com a descoberta da moeda, mercadoria por todos admittida como medida commum de valor, a troca passou a ser a compra e venda", quando, então, podemos ver o início da economia de mercado que vai levando à especialização da produção para dar atendimento às necessidades, constituindo-se as ordens protecionistas dos praticantes do mesmo ofício.

Esta passagem da satisfação dos desejos ou necessidades humanos pela via do artesanato àquela da manufatura predisponenté à oferta de produtos, à tentativa de ofertas na "praça", ou no local mais conveniente, foi modelando costumeiramente "atos jurídicos" regulados pelas necessidades de am-bos os interessados, que vieram, pouco a pouco, se tornando paradigmas para a solução de controvérsias assim surgidas.

Em momentos pontuais vamos encontrar alguns traços legislativos em que se delinearam operações comerciais em códigos das épocas mais remotas, como é o caso do Código de Hamurabi, na Babilónia, onde escavações do princípio deste século trazem informações. No comércio marítimo foram os técnicos que lhe deram maior ênfase, fabricantes e armadores de navios de comércio foram transformando o Mar Mediterrâneo em importante via de comércio internacional, agregando-lhe, assim, normas próprias desta circulação de mercadorias, centrada na Ilha de Rhodes, cidade que se notabilizou como base legiferante do comércio no Mediterrâneo. Organizava-se, assim, o comércio marítimo, enquanto vigiam ainda apenas os costumes a reger o comércio terrestre, sendo certo que "para as exigências do commercio terrestre bastavam os costumes dos mercadores que viviam no dilatado império, os quais, por sua condição de estrangeiros ou bárbaros, influência muito escassa exerciam na vida jurídica do povo romano, porque, sendo este de natureza guerreiro e aristocrático, não praticava o commercio, que considerava com menosprezo e impróprio do seu orgulho. Não sentia necessidade de modificar o seu systema jurídico por exigências de uma vida económica que não compre-hendia".5

Na época romana é importante que se lembre a comercialização de produtos necessários sem caráter dê industrialização, cujos atos vinham disciplinados no jus civile, mantendo-se, de certa forma, o distanciamento do cidadão do âmbito do comércio, prevalecendo, assim, um regramen-to costumeiro, além da lex rhodia, disciplinando o comércio no maré nostrum.

É a queda do Império Romano, no entanto, que vai dar fim à fase primitiva,

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de situações esparsas, sem grande criatividade organizacional, apesar de algumas leis e muitos costumes, havendo sido dada preferência normativa ao comércio marítimo.

É a Idade Média que se inicia aquela responsável pelas transformações na vida na Europa, à vista do esfacelamento da estrutura de poder centralizado, com a consequente atomização do domínio em torno a vários centros dispersos. "No decorrer do século XI a vida na Europa começou a modificar-se; verificou-se avanço notável na constituição política e económica dos povos, estes passaram da vida de aldeolas informes para a vida de primitivas cidades com rudimentos de organizações; estas surgiam, via de regra, nos sítios onde um castelo de senhor feudal lhes dava a indispensável proteção militar, ou onde o mosteiro as amparava também com o respeito religioso; a prosperidade das cidades acentuava-se mais quando localizadas em postos que permitissem o exercício do comércio proveitosamente (pontos de transbordo de mercadorias ou lugares de pouso natural das caravanas)."6

É este o cenário ideal para a compreensão da relação de independência que passa a se criar entre as várias camadas sociais da época, permitindo-se a sociedade citadina o direito de organizar o trabalho des-, tinado à satisfação dos desejos humanos, necessários e supérfluos, seguindo a intuição própria dos que passaram a se habituar com a intermediação.

Aqui. tem início o direito dos mercadores em forma ordenada e sistematizada costumeiramente, com base na defesa de um profissionalismo. Passa-se a fazer da prática do comércio uma profissão, consolidando a anterior posição isolada de Athenas, onde "os commerciantes não podiam ser calumniados e nem embaraçados no exercício da profissão".7 Os mercadores e os artesãos passam a se organizar em corpora-ções de ofício a partir do século XII, que acabam por fazer um contraponto com os senhores dos castelos e dos mosteiros, uma vez que as corporações passam a se fazer reger por meio de regramentos consubstanciados em estatutos.8

Conforme Bulgarelli:9 "É, portanto, o período de formação do Direito Comercial. Criam os mercadores e artesãos, no seio das suas corporações, o seu Direito ágil, vivo e solerte, em contraposição ao Direito Ro-mano-Canônico, excessivamente formalista e solene".

Assim chegamos à fase das corporações, onde vamos encontrar a grande fertilidade criativa dos mercadores, que de tudo faziam para ver entregue ao consumidor os produtos que pudessem portar aos pontos de encontro entre a oferta e a procura.

Chama-nos especial atenção o desenvolvimento de Veneza, território que, diversamente do restante da Europa, onde há o predomínio da terra agriculturavel, "a cidade dos canais trata, com uma energia e uma atividade surpreendentes, de impulsionar esse comércio marítimo que é condição essencial de sua existência. Pode-se dizer que toda a população se dedica ao comércio e dele vive, da mesma maneira como, no Continente, todos os homens vivem da terra (...). Apenas a fortuna estabelecia entre eles diferenças sociais, porém estás não dependiam de sua condição jurídica. Desde o começo, os lucros comerciais produziam uma classe de comerciantes endinheirados, cujas operações apresentaram, desde então, um caráter nitidamente capitalista. A sociedade en commenda aparece desde o século X e é, com toda a evidência, uma imitação das práticas do Direito Consuetudinário Bizantino. O progresso económico manifesta-se de forma indiscu-

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tível pelo emprego da escrituração, que é indispensável a qualquer movimento de negócios de certa importância".10

Aparece, como se vê do texto clássico de Henri Pirenne, a menção à precursora da sociedade em comandita, abrindo a série de criações ou inovações que vieram dando ao mundo jurídico nova dimensão em Direito Comercial: "sem dúvida a Igreja se opôs a esse movimento, hostil como era ao comércio, e cujos bispados eram mais numerosos e poderosos ao Sul dos Alpes do que em qualquer outra parte". "Para dizer a verdade, o referido conflito existiu durante toda a Idade Média, e até fíns desta, a Igreja continuou considerando os lucros comerciais como perigosos para a salvação da alma",11 porém isto não impediu o florescimento do comércio, das práticas mercantis e das novas figuras jurídicas que vieram tendo nascimento nessa época e que perduram até nossos dias em plena eficácia.

"Os mercadores e os artesãos, que a partir do século XII se associam em grémios e corporações e possuem seus próprios órgãos de jurisdição, aparecem também em estreita conexão com as feiras e merca-dos."12 "Adotam...

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