Visão analítica do erro de fato

AutorEdmilson Villaron Franceschinelli
Ocupação do AutorAdvogado. Ex-Promotor de Justiça e Ex-Juiz de Direito. Mestre em Direito
Páginas165-184

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1 Conceito analítico do erro de fato

Os autores costumam conceituar o erro de fato nos termos em que vem consagrado na lei processual. Como informa Sidney Sanches1:

"O conceito de erro de fato o próprio Código o dá, no § 1º ao n. IX do art. 485: Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido."

O Código de Processo Civil, na verdade, não se dignou a dar o conceito de erro de fato, mas apenas a apontar a sua consequência, ou seja, levar o juiz a admitir um fato inexistente ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

O erro é, antes de tudo, um vício de vontade. Pode um juiz corrupto, conscientemente, admitir um fato inexistente ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido. E, aqui, não se pode falar em erro de fato.

O legislador processual não conceituou o erro de fato, pois não apontou o seu conteúdo, que é o vício de vontade do juiz. Essa posição do legislador não é estranha, já que no art. 162 adota o mesmo critério ao conceituar a sentença, não pelo seu conteúdo, mas pelos efeitos que produz no processo, ou seja, provoca a sua extinção. Aliás, estabelecer os conceitos dos institutos jurídicos não é tarefa do legislador, mas, sim, da doutrina.

Entendemos que o conceito de erro de fato envolve outros pressupostos essenciais ou necessários à sua própria existência. O conceito correto desse tipo de erro deve advir de uma visão analítica do instituto, que aponte todos os seus elementos estruturais. O Direito Processual

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Civil pouco desenvolveu o instituto do erro de fato, motivo pelo qual buscamos no Direito Civil e no Direito Penal a base analógica para tentar demonstrar os elementos ou pressupostos necessários para a sua configuração.

A partir destes estudos analógicos e analíticos e de outras considerações, podemos afirmar que erro de fato é aquele erro "essencial" e "escusável", causado pelo conteúdo de um ato ou documento da causa, que vicia a vontade de pelo menos uma das partes (o autor da ação rescisória) e a do juiz prolator da decisão rescindenda, levando à produção de uma sentença com trânsito em julgado, na qual se admite um fato falso ou contrário à realidade.

Este trabalho tentará, nos próximos itens deste Capítulo, promover pelo processo analítico a explicitação de cada um dos elementos que integram o conceito acima.

2 Dos efeitos do erro de fato

O erro de fato, em todos os ramos do Direito, atinge a vontade. Ausente a vontade, o ato jurídico, como ensina Washington de Barros Monteiro2, é inexistente. Estando a vontade presente na formação do ato jurídico, porém maculada por algum vício, como o erro, acarretará somente a sua anulabilidade. A sentença é um ato de vontade e o erro de fato é um vício que vem macular essa vontade. Por consequência, o efeito do erro de fato é levar o juiz a admitir um fato inexistente ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido (§ 1º, do art. 485, do CPC).

Presente em todas as searas do Direito, o vício da vontade provocado pelo erro produz inúmeros efeitos. No Direito Penal, o erro de fato (hoje chamado de erro de tipo) exclui o dolo (art. 20 do CP) e, por consequência, o próprio crime. No Direito Civil torna anulável o ato jurídico (art. 147, inciso II, do CC). No Direito Processual Civil possibilita a desconstituição de uma sentença transitada em julgado (art. 485,

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inciso IX, do CPC). Vimos, a sentença é um ato de vontade e o erro de fato é um vício que vem macular essa vontade. Por resultado, o efeito do erro de fato é levar o juiz a admitir um fato inexistente ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido (§ 1º, do art. 485).

Da análise do erro de fato no Direito Processual Civil concluímos que, para a sua ocorrência, é necessária a existência de dois fatos. O primeiro é o fato real, verdadeiro, que existe no mundo material ou concreto, o fato efetivamente ocorrido. O segundo é o fato falso, irreal, criado na mente do juiz em decorrência do vício da vontade, e declarado na sentença. Este último, o fato inexistente, é efeito do erro de fato, pois dele decorre. Assim, por exemplo, quando um juiz, em razão do erro de fato, profere uma sentença declarando uma paternidade que não existe no mundo real ou biológico, estará admitindo um fato inexistente. Fato este que só se verifica na sentença, e não no mundo concreto. Mas nota-se, em razão do erro de fato, a existência de dois fatos. Um falso, que o juiz declarou na sentença, no exemplo acima, a declaração da paternidade. O outro, o fato verdadeiro não declarado em razão do erro, no mesmo exemplo, seria a inexistência da paterni-dade. Vamos a outro exemplo. Suponha-se que o juiz, ao contrário do exemplo anterior, julgue improcedente a ação investigatória, quando no mundo real ou biológico a paternidade efetivamente exista. Aqui, o juiz considerou inexistente um fato efetivamente ocorrido (§ 1º, do art. 485 do CPC). Nele também existe a presença de dois fatos, sendo o primeiro o falso, contido apenas na sentença, não no mundo real (inexistência da paternidade), e o segundo fato, o verdadeiro, pertencente ao mundo real (existência da paternidade).

Ao adotar o erro de fato como um dos fundamentos para a ação rescisória, o legislador demonstra que para ele a sentença justa é aquela que está de acordo com a verdade real. Por esta razão, torna possível a desconstituição de uma decisão de mérito, quando a mesma admite um fato inexistente ou considera inexistente um fato ocorrido, ou seja, quando admite um fato falso ou irreal. Afinal, não poderia ser

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outra a posição do legislador, já que uma decisão que não retrata a realidade das coisas é uma decisão injusta e sempre virá em desprestígio da justiça e da verdade.

Ora, o erro de fato consiste em se ter uma falsa ideia sobre as coisas, é o engano a respeito de uma circunstância material. Se o erro de fato reflete sobre a vida material, não se pode entendê-lo como apurável mediante simples exame de documentos e peças dos autos. Entretanto, não é esta a posição da jurisprudência, para a qual só há erro de fato se este estiver perfeitamente evidente nos autos e tiver sido negado pela decisão rescindenda3. Ela não admite que se possa demonstrar o erro por meio de novas provas, mas apenas por meio de melhor exame daquelas que constem dos autos4.

Esta é também a posição da doutrina. Veja-se, por exemplo, Frederico Marques5, que citando Luiz Eulálio B. Vidigal sustenta que: "É preciso que o erro recaia sobre fato que seja fundamental para a conclusão da sentença e que se verifique existente do simples confronto entre as declarações da sentença e os atos e documentos da causa. Não se pode admitir, na rescisória, a produção de novos títulos ou documentos para fornecer a prova do erro em que o juiz caiu."

Esta posição também está em harmonia com a orientação que hoje, quase transformada em princípio, defende que: "o que não está nos autos, não está no mundo."

Com a devida vênia, não concordamos com as posições aqui defendidas. Inicialmente, dois aspectos devem ficar bem claros: 1º)- a causa do erro de fato, que são os atos ou documentos da causa segundo a regra contida no inciso IX, do art. 485, do CPC; 2º)- o efeito do erro de fato, que, segundo o § 2º, do art. 485, consiste em fazer a sentença admitir um fato inexistente, ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido, em outras palavras, a sentença, como efeito do erro, admite um fato que não reflete a realidade das coisas.

Assim, é o fato causador do erro que deve estar contido nos autos, já que o fato decorrente do erro, é irreal por não refletir a reali-

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dade das coisas e, em hipótese alguma, deveria fazer parte do mundo jurídico. Suponha-se que por erro do perito o exame de DNA para apuração da paternidade seja positivo, quando, na verdade, deveria ter sido negativo, e o juiz julgue procedente a investigatória, com base exclusivamente no laudo. Nota-se que a causa do erro do juiz está nos autos. É o laudo. Mas, se nenhuma outra prova foi produzida na investigatória, o erro não será constatado sem novas provas, ou seja, o erro não poderá ser apurado pela simples análise dos documentos ou provas dos autos. O ato jurídico sem objeto, como visto no item 2, do Capítulo III, é inexistente, razão pela qual não se pode estabelecer o vínculo da paternidade natural ou consanguínea, sem que ele exista biologicamente. Se não há o vínculo de paternidade, não há o objeto da relação jurídica material. A sentença que deu luz a um ato inexistente, trazendo-o para o mundo do Direito. Ora, não se pode declarar aquilo que não existe.

Washington de Barros Monteiro6, seguindo a orientação de toda doutrina civilista, comenta que o ato jurídico inexistente nenhum efeito pode produzir. Contudo, esse raciocínio, parece não merecer crédito; já que, se forem admitidos como atos jurídicos perfeitos e válidos pelo juiz, em decorrência de um erro de fato, que não pode ser demonstrado pela produção de novas provas, passarão, em razão da res judicata, a ter plena eficácia.

Em razão destes argumentos, uma vez não prevaleça o raciocínio do autor, não merecerá crédito a posição dos civilistas segundo a qual os atos jurídicos inexistentes e nulos não produzem qualquer efeito; já que, se forem admitidos como atos jurídicos perfeitos e válidos pelo juiz, em decorrência de um erro de fato que não pode ser constatado sem a produção de novas provas, passarão, em razão da res judicata, a ter plena eficácia.

É de se considerar, ainda...

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