Súmula vinculante N. 4: Tertius genus no controle da constitucionalidade?

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani
CargoDesembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas e Doutora em Direito do Trabalho, nível de pós-graduação pela USP ? Universidade de São Paulo
Páginas140-182

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1. Introdução

Uma das características de nossa contemporaneidade, por al-guns denominada de pós-modernidade, é que não há mais espaço para um discurso excludente entre progresso econômico e padrão normativo constitucional. Ambos têm que correr juntos pois estão imbricados, e assim devem ser considerados quando se trata de assegurar o desenvolvimento sustentável da nação.

Vinte anos depois de sua promulgação, se apresenta cada vez mais explícita a impressionante sintonia da Constituição de 1988 a essa nova perspectiva trazida pela realidade fática, tornando incabível a leitura reducionista dos que pretenderam relegá-la à menoridade. Editada num momento de transição, entre a ordem autoritária que estava em vigor há mais de duas décadas e o regime democrático, a nova Carta fez mais do que isso, ao construir vias de acesso à obtenção da maturidade institucional.

Entre essas vias, o elenco de direitos trabalhistas se reveste de significativa relevância, pois ante uma realidade fática tão complexa e plural, que caracteriza um país com dimensão continental, aponta as diretrizes necessárias para preservação dos direitos fundamentais, notadamente os que se referem à preservação da saúde e higidez física do trabalhador, para tanto exigindo a manutenção da salubridade no local de trabalho.

Por isso, sem esquecer as idas e vindas, não se pode negar a importância da Carta Constitucional como garantidora da normalidade democrática assentada sobre o Estado de Direito. Neste cenário, se revela paradigmática a grande celeuma desencadeada pela edição da Súmula Vinculante n. 4, notadamente em face da extensão dos seus efeitos em relação ao marco normativo posto pelo sistema jurídico, como passarei a demonstrar.

Trata-se de empreitada de risco, pois encetada no calor dos acontecimentos, já que este artigo está sendo escrito em outubro de 2008, quando toda a matéria ainda constitui objeto de intensa discussão. Entretanto, não me furtarei à tarefa, porque é precisamente neste momento que se deve contribuir para o debate.

2. Novos tempos, novos desafios

Nesta fase peculiar que estamos vivendo, em que novas técnicas laborais vêm sendo implementadas e a atividade é exigida num ritmo

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acelerado, o que aumenta consideravelmente os riscos, mais do que nunca se torna necessário compreender que o desenvolvimento sustentável da nação só pode ser atingido se houver investimento na melhoria das condições de trabalho, a fim de se obter maiores índices de produtividade sadia. Como explica Carlos Eduardo Soares Gonçalves1 “mais produtividade gera mais investimentos, ou, dito de outro modo, a direção da causalidade corre da produtividade para o investimento, e não o contrário. Por isso, mais frutífero do que defender maiores taxas de investimento é defender melhoras institucionais que aumentem a produtividade econômica e, consequentemente, o investimento e o PIB. Para quem acha essa inversão de causalidade estranha, chamamos atenção para o fato de que a correlação estatística entre crescimento e investimento futuro é, nos dados, mais forte que a correlação entre crescimento e investimento passado”.

Daí se pode concluir como insustentável, a tese de que os gastos despendidos na melhoria das condições de trabalho redundariam num custo insuportável para a atividade econômica, pois na verdade atuam como investimento propulsor do desenvolvimento da nação como um todo, além de equalizar as condições de concorrência entre os segmentos que exploram atividade produtiva.

3. A ambivalência

Discorrendo sobre a sociedade contemporânea, Zygmunt Bauman2 ressalta que, ao contrário da modernidade, pautada por marcos unívocos e bem definidos, a atualidade se concretiza como um estado de ambivalência, em que tudo vale e ao mesmo tempo nada vale, o que causa uma crise de valores entre as alternativas, que se apresentam em número cada vez mais elevado.

Na área jurídica a questão da ambivalência se torna particular-mente relevante quando o marco normativo, posto para disciplinar comportamentos, entra em xeque e passa para a sociedade uma sensação de impotência e perda de controle. Neste contexto, ressalta

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Bauman, as consequências “se tornam imprevisíveis, enquanto o acaso, de que supostamente nos livramos com o esforço estruturador, parece empreender um retorno indesejável”, com o aumento do nível de contingência, que pode levar o grupo social à desagregação.

Por isso, quando há ambivalência de valores em situação de conflito, a aplicação singela da regra se torna insuficiente para apresentar soluções, o que leva à necessidade de se guiar pelos princípios constitucionais postos pelo ordenamento maior que, ademais, também terão que ser interpretados de forma concomitante e não excludente, e sem perder a percepção de que sua aplicação deve ser pautada pela máxima eficiência em debelar a insegurança, um dos fenômenos mais angustiantes de nosso tempo.

Como bem define Bauman, a luta “pela ordem não é a luta de uma definição contra outra, de uma maneira de articular a realidade contra uma proposta concorrente. É a luta da determinação contra a ambiguidade, da precisão semântica contra a ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão”.

Ademais, quando os níveis de ambivalência são aumentados, como ocorre na contemporaneidade, o Parlamento, sozinho, se torna incapaz de fixar a completude dos parâmetros de um padrão ordinatório, pois o modelo unívoco não oferece mais respostas satisfatórias num ambiente de multiplicidade crescente, abrindo espaço para um acentuado protagonismo do Poder Judiciário.

Ou seja, o Parlamento estabelece as regras gerais e traça as diretrizes; porém, o faz em cláusulas abertas, não mais em numerus clausus, abrindo caminho para uma atuação jurisdicional mais ampla, não apenas para interpretar, mas também para complementar o próprio enunciado da norma.

Esta atuação, entretanto, só terá legitimidade se for pautada pela aplicação dos princípios constitucionais.

4. A constitucionalização do direito

A constitucionalização dos direitos se revela imprescindível, portanto, para garantir a funcionalidade do próprio sistema e, para que se revista de eficácia, deve observar determinados princípios, entre os quais merecem destaque:

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4.1. Princípio da unidade da Constituição

O ordenamento é constituído por preceitos integrados num sistema unitário e não um feixe de normas isoladas. O sentido de cada norma é intercambiante com o sentido do todo, como enfatiza Gilmar Mendes, ressaltando que sob tal perspectiva a Constituição “só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta [...] que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque — relembre-se o círculo hermenêutico — o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes”3, de modo que a vedação estabelecida no inciso IV do art. 7º da CF/88 não pode ser interpretada sem considerar o disposto nos incisos XXII e XXIII do mesmo artigo.

4.2. Princípio da concordância prática ou harmonização

Em caso de aparente diversidade entre normas constitucionais, deve ser adotada a solução que as harmonize de tal modo, que resulte na otimização de ambas e no menor sacrifício possível dos bens e valores envolvidos.

4.3. Princípio da correção funcional

Tem por finalidade orientar o intérprete no sentido de que o ordenamento coerente e previamente ponderado não pode levar a um resultado que desatenda tais parâmetros. A aplicação deste princípio tem especial relevo no controle da constitucionalidade, a fim de resguardar a estrita fidelidade à Constituição. Neste contexto, insistir na utilização do salário mínimo, como base de cálculo do adicional de insalubridade, leva ao descumprimento do preceituado nos incisos XXII e XXIII do art. 7º da CF/88, prejudicando a funcionalidade do sistema, que fica travado pela indefinição como estamos verificando no caso concreto.

4.4. Princípio da máxima efetividade

Tem o escopo de otimizar a eficácia da norma constitucional, preservando sua inteireza a fim de garantir a utilidade do ordenamento

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para regrar os atos/fatos concretos da vida. A interpretação da norma deve evitar que a aplicação de uma redunde em negativa de outra. Se a norma constitucional institui um direito, o sistema deve garantir sua efetividade.

4.5. Princípio da eficácia integradora

Orienta o intérprete no sentido de que, ao construir soluções procure dar preferência àqueles critérios que favoreçam a integração social e a unidade, porque ao atuar como coluna vertebral que sustenta a ordem jurídica, a observância da Constituição deve produzir e manter a...

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