Vigiar e punir ? ideias sociais e jurídicas na obra de foucault

AutorRoberto Victor P. Ribeiro
CargoAdvogado
Páginas35-42

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Vigiar e punir inicia narrando uma verdadeira cena de crueldade humana, temperada com requintes de pantomima penal. Trata-se da execução da pena de Damiens, um parricida condenado. Em seguida, saímos da horrenda paisagem da morte de Damiens12 e lemos um regulamento de um internato3 de jovens infratores. Temos, nesse momento, diferenças de épocas e da pedagogia da punição.

Foucault faz o seguinte comentário acerca desses dois momentos da história de repreensão de humanos delinquentes: “Apresentamos exemplo de suplício e de utilização do tempo. Eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinquentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal. Menos de um século medeia entre ambos.”4 E complementa: “Desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repreensão penal”5.

O que no passado era necessário, pois o povo precisava se assustar com as formas hediondas de punição, no futuro não tão distante foi modificado, porque na verdade o que o povo precisa não é de cenas chocantes de violência praticadas pelo Estado, que deveria ser a mãe e o pai de todos os cidadãos, mas sim de uma educação mais perene, mais justa, mais fraterna e mais frequente. O Estado precisa, ainda hoje, beber na fonte profícua de Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.” Esse será o grande efeito que teremos para prevenir delinquências e outros desajustes sociais.

O filósofo francês em comento assevera que “a execução pública é vista como uma fornalha em que se acende a violência”6. Destarte, lembro-me de dois ensinamentos exortados por Lacassagne e Beccaria.

Alexandre Lacassagne, no passado, já asseverava: “A sociedade tem os criminosos que merece.” Afinal de contas, nós é que dosamos o poder e o dever-ser de cada um. Se somos rígidos demais, teremos celerados cruéis, se formos muito complacentes, teremos criminosos contumazes. Qual a receita certa? O equilíbrio! Como se alcança essa condição equânime? Educando!

Beccaria, por sua vez, refletia: “Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos.”7Caro leitor, é verdade! Não é apenas um mero aforismo ou uma tradição oral que escutamos e repassamos aos nossos colaterais e descendentes, violência gera violência. Com a medida em que apenamos o outro, esta será a medida que nos admoestará. Se fracassamos na reeducação e ressocialização dos delinquentes, estes retornarão ao mundo real, mais cedo ou mais tarde, e cometerão novas atrocidades, às vezes pior do que as cometidas no passado. O mode-lo penitenciário precisa ser revisto. Ainda é tempo.

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Mais uma vez Foucault nos doa uma pérola: “A certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte da violência que está ligada a seu exercício”8.

O Estado-juiz começa a entender que o seu trabalho é “procurar corrigir, reeducar, ‘curar’”9 , e não mais promover espetáculos sangrentos
no meio da rua, pensando ainda estar nos
tempos do Coliseu na
Roma antiga.

Na grande evolução que o Estado
vem passando de milênio para milênio, de
século para século,
aprendeu uma nova
lição que ensina: “O
sofrimento físico,
a dor do corpo não
são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.”10Hoje devemos suspender o direito de liberdade ou os direitos políticos, mas nunca, jamais, o direito à vida ou o direito à incolumidade física. Entretanto, infelizmente, alguns Estados não cumprem os tratados internacionais de direitos humanos e ainda agora, nos dias hodiernos, assistimos, em plena revolução tecnológica e intelectual do homem, a existência de prisões que são verdadeiras masmorras ou calabouços insalubres e degradantes. Como é possível recuperar um criminoso usando meios e ferramentas que os séculos anteriores já demonstraram ter fracassado?

É fácil a equação matemática que devemos aplicar hoje. Não precisamos atacar o corpo material, muito menos o psicológico moral, é fácil, basta demonstrar aos delinquentes o caminho certo. Todos merecem chances. Ainda mais em um país onde a desigualdade é extrema e as oportunidades são rarefeitas, para não dizer monopolizadas por uma ou duas frações de indivíduos da sociedade. Como tão bem demonstra Foucault: “Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou a multa tira os bens.”11 Evolução. A palavra de ordem é essa: evolução. Saímos dos suplícios públicos que escarneciam o corpo dos apenados para um engenho que num rápido manuseio retirava a vida do apenado, sem que para isso fosse necessário violá-lo, vilipendiá-lo e torturá-lo. Depois disso, a evolução tirou a guilhotina e passou a suprimir a liberdade e o direito de propriedade ao invés da vida. Evoluímos. E agora, paramos? Evolução quer dizer movimento linear voltado para o crescimento e desenvolvimento. O grande Charles Chaplin nos ensinou a evoluir para a direção certa, se é que tem direção certa. Numa ocasião, o velho Chaplin ia caminhado placidamente pela rua, quando sem menos esperar topou em uma pedra e se desequilibrou; a meninada que estava a brincar na rua olhou para o grande artista e insultou: vai para onde palhaço? E Chaplin respondeu: “para frente, sempre para frente”.

Voltando aos ricos ensinamentos da obra que estamos analisando, percebemos um retrato histórico doado por Foucault: “Os parricidas – e os regicidas, a eles assemelhados – eram conduzidos ao cadafalso, co-bertos por um véu negro, onde, até 1832, lhe cortavam a mão”12.

O FILÓSOFO FRANCÊS EM COMENTO ASSEVERA QUE “A EXECUÇÃO PÚBLICA É VISTA COMO UMA FORNALHA EM QUE SE ACENDE A VIOLÊNCIA”

Por que o Estado passou a cobrir o rosto dos criminosos em vez de lhe expor como se fazia nos suplícios públicos? Por um simples e importante motivo: evitar a publicidade desses fatos. Somos, ao lado de grandes gênios e pensadores, defensores que a mídia deveria evitar exibir de forma sensacionalista alguns desatinos sociais. Não é de hoje a percepção de que quando um novo crime, ou modalidade de crime, é exibido na mídia, nos dias ulteriores há uma verdadeira epidemia do neocrime país afora. Parece que a televisão, a internet, o jornal, o rádio, ensinam a pessoa a fazer algo que ela nem imaginava ou, como pensam alguns, acordam o gene sociopata e psicopata que está adormecido em determinados indivíduos. Nos idos da década de 1980 e 1990, a Inglaterra passou por um momento difícil na área esportiva, mais precisamente no futebol. As torcidas de inúmeros clubes da Inglaterra passaram a se uniformizar e se organizar para torcer pelo seu time nos estádios. Até aí, nada de mais, pelo contrário, atitude interessante de coesão e união em prol da sua agremiação esportiva. O problema veio depois. A rivali-dade esportiva ultrapassou o bom senso do esporte e passou a lesar a integridade física das pessoas, ceifando em alguns casos até a própria vida. Nesse momento, a Inglaterra passou a conhecer grupos de torcedores intitulados de Hooligans, que em tradução livre quer dizer: vândalos. Esses torcedores praticavam violência contra outros torcedores, terceiros que nada tinham a ver com o revanchismo desportivo, propriedades, animais, espaços públicos e tudo mais que se encontrava na direção deles. Era verdadeira horda de marginais a saquear, espancar, espoliar, depredar e destruir. Como

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a Inglaterra conseguiu educá-los? Simples. Parou de exibir em telejornais, jornais escritos e rádios, notícias que informassem a ação desses arruaceiros. Os psicanalistas e antropólogos são unânimes em concordar que todo ser humano é exibicionista, uns são menos, outros são muitos, mas todos são. Muitos desses hooligans objetivavam a mídia, a publicidade, a propaganda, a falácia de chegar para os amigos e dizer “não sou um mero anônimo, sou um hooligan e ontem a ação do meu grupo foi televisionada, foi fotografada etc.” Cessou a mídia, cessaram os ataques. Ainda hoje, quando em jogos de futebol que possuem grande disputa entre os dois times, um ou outro torcedor invade o campo para praticar ato desarrazoado, a primeira providência que a televisão faz é tirar o foco da imagem da cena, ou seja, coloca a câmera focalizando uma cena bonita que ocorre no estádio, uma criança tomando sorvete, um casal se abraçando etc. Não há mais propagação, só tem conhecimento do intruso aquele que foi ao estádio e este não tem conhecimento apenas do fato infracional, mas também da severa punição que o infrator, ali mesmo no juizado especial que tem no estádio, irá sofrer. A Inglaterra somou atitude inteligente com uma repreensão severa, aguda e eficaz. Resultado: os hooligans fazem parte do folclore local. Exemplo para a mídia do mundo, mormente, a nossa brasileira. Não esqueçamos: um criminoso, além de ter o direito constitucional de proteção a sua imagem, não merece ser visto como um herói. Quantos brasileiros e brasileiras fazem atitudes altruístas todos os dias e a mídia não vai em busca dessas pessoas?

Retornando a Foucault, encontramos algumas passagens que demonstram cabalmente o fracasso e a falência da pena de morte. Não é com a morte do criminoso que vamos educar a sociedade, afinal não podemos olvidar de vista que o criminoso deve ter receio de praticar crimes por conta da sanção que irá sofrer e não porque será, desde o início, apenado pela sociedade para ir à forca ou merecer a pena capital.

Certa ocasião, uma criminosa foi levada ao banco dos réus e após a leitura do libelo acusatório e das razões de defesa, teve por fim sua condenação confirmada nos termos da delatória. Em seguida a ré “conservava o...

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