Vigiando a violência - o uso de meios de controlo e fiscalização à distância em processos de violência domestica
Autor | Nuno Lopes - Catarina Sales Oliveira |
Cargo | Mestre em Sociologia pela UBI - Doutora em Sociologia, Professora Auxiliar UBI |
Páginas | 69-91 |
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Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
V. 5 - Nº 01 - Ano 2016 ISSN | 2179-7137 | http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
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Seção: Direitos Humanos e Políticas Públicas de Gênero
VIGIANDO A VIOLÊNCIA – O USO DE MEIOS DE CONTROLO E FISCALIZAÇÃO À DISTÂNCIA EM PROCESSOS DE VIOLÊNCIA DOMESTICA
Nuno Lopes1 Catarina Sales Oliveira2RESUMO: A violência de género e dentro dela a violência doméstica é um fenómeno de proporções alarmantes à escala mundial: a Organização Mundial de Saúde alertou para que um terço das mulheres do mundo já teriam vivenciado uma situação de violência física ou sexual perpetrada por um parceiro íntimo (WHO, 2014). O combate a este flagelo tem mobilizado uma diversidade de atores sociais, tais como ativistas, grupos organizados de pessoas, académicos e investigadores em prol da compreensão do fenómeno, para a mudança legislativa e respostas estatais (Kaladelfos & Featherstone, 2014). Uma das respostas encontradas nos últimos anos foi a vigilância electrónica. Especificamente em Portugal desde 2011 que o sistema jurídico-legal Português aplica esta medida em processos de violência
1Mestre em Sociologia pela UBI
2Doutora em Sociologia, Professora Auxiliar.UBI, CIES-IUL
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doméstica para intervir de forma diferenciada nestas situações, procurando promover a prevenção da reincidência e aumentar o grau de segurança da vítima. Este artigo analisa as primeiras experiências de implementação do sistema de vigilância electrónica no distrito da Guarda bem como o acompanhamento efetuado aos primeiros processos de violência doméstica com uso de meios de controlo e fiscalização à distância. Debate-se a eficácia da medida do ponto de vista dos seus resultados e das perceções das vítimas, dos agressores e da equipa técnica que acompanhou os processos. A metodologia do estudo empírico recorreu essencialmente à análise documental e de conteúdo. Os resultados encontrados permitem perceber que existem obstáculos à
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vigilância electrónica destes processos que se relacionam com as próprias raízes do fenómeno da violência doméstica e a forma como o processo de vigilância é deslegitimado não só por agressores como pelas próprias vítimas. Neste contexto o sucesso da aplicação do mecanismo está profundamente dependente da capacidade de trabalhar os processos em diversas vertentes bem como da continuidade do processo de mudança social de mentalidades em prol da não violência.
PALAVRAS CHAVES: vigilância; violência doméstica; agressores; pulseira eletrónica.
ABSTRACT: Gender and domestic violence are worldwide alarming phenomena: WHO points out that one third of women have already experienced a situation of physical or sexual violence from an intimate partner (World Health Organization, 2013). The fight against this problem has mobilized a variety of social actors like activists, associations, scholars and researchers for the sake of understanding this phenomenon in order to promote legislative change and state responses (Kaladelfos & Featherstone, 2014). One of the answers found in recent years was
electronic surveillance. Specifically in Portugal since 2011 that the legal system applies this measure to intervene in domestic violence cases seeking to promote the prevention of recurrence and increase the level of safety of the victim. This article looks at the early implementation experiences of the electronic surveillance system in the district of Guarda and the support provided to the first cases of domestic violence involving the use of electronic surveillance. Based on a qualitative methodological approach of content analysis we will discuss the effectiveness of the measure based on the discourses and perceptions of victims, offenders and thecnicians. It was possible to realize that the obstacles to electronic surveillance are related to the very roots of the phenomenon of domestic violence. The mecanism is delegitimized not only by the agressors but also by the victims themselves. In this context the success of the mechanism is deeply dependent on the ability to work broadly the problem in order to promote the value of nonviolence.
KEYWORDS: Surveillance; domestic violence; aggressors; electronic bracelet.
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INTRODUÇÃO
A problemática da violência doméstica é um fenómeno social com raízes muito antigas mas só recentemente se consciencializou e conceptualizou enquanto problema social no contexto dos países ditos desenvolvidos. No caso de Portugal, esta consciencialização foi ainda mais recente e a introdução da temática na agenda pública muito deve à ação empenhada de organizações de mulheres como a UMAR (União Mulher Alternativa Resposta) ou a APEM (Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres)3e à ação institucional da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. O conceito de violência doméstica é muito abrangente visto que pode englobar qualquer tipo de atuação incluindo a omissão por parte de um ou mais elementos de uma família que resulte na privação de direitos ou liberdades ou afectação do desenvolvimento pessoal normal (Pagelow, 1984). A VD estende-se assim a todos os elementos da família podendo acontecer entre cônjuges ou companheiros, mas também entre outros
3Para mais informação sobre estas associações consultar http://www.umarfeminismos.org e http://www.apem-estudos.org
membros da família em coabitação. Contudo, os estudos dizem-nos que na larga maioria dos casos os agressores são homens e as vítimas de violência doméstica são geralmente mulheres (APAV, 2014 ; OMS, 2014) o que faz com que muitas vezes a expressão do fenómeno esteja muito próxima dos valores referentes à violência conjugal. Neste artigo, o estudo empírico que apresentamos baseia-se em casos de violência doméstica conjugal.
Em Portugal, a violência doméstica passou a ter natureza de crime público com a Lei nº 7/2000, de 27 de Maio não dependendo de queixa por parte da vítima para que o procedimento criminal possa avançar. Esta alteração teve origem no Projeto de Lei nº 58/VIII e serviria para reforçar as medidas de proteção às mulheres vítimas de violência. Este Projeto foi apresentado pelos deputados Odete Santos e Octávio Teixeira do Partido Comunista Português. A lei nº 7/2000, de 27 de Maio, teve ainda como base o Projeto de Lei nº 21/VIII, intitulado – Violência Contra a Mulher na Família – Crime Público. Foi da autoria dos deputados do
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Bloco de Esquerda Francisco Louça e Luís Fazenda e foi admitida na Assembleia da república do dia 25 Novembro de 1999. Mais recentemente, a questão autonomizou-se no Código Penal, estipulando-se o crime de violência doméstica (Lei n.º 59/2007) e as suas vítimas passam a ser objeto de proteção específica (Lei n.º 112/2009). A questão da terminologia empregue foi uma das críticas levantadas por associações feministas à Lei 59/2007 argumentando que não traduzia eficazmente as realidades e práticas das mulheres. É no entanto de assinalar o incontornável contributo desta nova legislação que fez aumentar significativamente o número de condenações por este crime (Duarte, 2013).
Quanto à vigilância electrónica, este mecanismo foi introduzido no Código de Processo Penal em 1998, tendo como principal objectivo ser uma alternativa à prisão preventiva. Em 2004, após resultados credíveis no decorrer do período experimental, a vigilância electrónica começou a ser alargada a todo o território. Em 2009 a revisão do Código Penal, introduziu a possibilidade da proibição de contactos entre agressor e vítima de violência doméstica com
recurso a meios electrónicos, vulgo pulseira eletrónica mas a morosidade do processo de implementação fez com que apenas em 2011 a medida começasse a ser efetivamente aplicada em todo o território nacional. Um dos objetivos do IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica (2011-13) era precisamente alargar a todo o território nacional da utilização da vigilância electrónica. Tratando-se de uma medida recente, urge refletir sobre o seu funcionamento, resultados, eventuais obstáculos e em que medida os objetivos estão a ser alcançados até porque o plano nacional actualmente em vigor (V Plano Nacional contra a Violência Doméstica 2014-17) pretende dar continuidade a esta medida como forma de intervir junto de agressores para evitar a reincidência.
1. CONTRIBUTOS TEÓRICOS PARA O ESTUDO DA DESIGUALDADE E VIOLÊNCIA DE DOMÉSTICA
É a partir do século passado e no contexto das sociedades pós-industriais que começa a ser identificado o fenómeno de abuso e violência contra as mulheres. Podem enumerar-se diversas perspectivas teóricas que explicam os
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fenómenos da violência doméstica como um problema social grave.
Após o marco da publicação da obra de Erin Pizzey...
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