Vícios do projeto edilício e suas consequências jurídicas

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas249-292

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Ver Nota1

El proyecto es pensamiento. Reflexiona sobre cada trazo que dibujas.

Primeiro conselho de Alfonso Munõz Cosme aos estudantes que iniciam o “complexo caminho de aprendizagem do projeto”.

... o projeto é personagem de muitos autores, e só assim concebido se faz inteligente; caso contrário, será obsessivo e inoportuno. O desenho é o desejo de inteligência.

Álvaro Siza

I A identificação dos vícios projetuais

Se no capítulo anterior tratamos das obrigações gerais dos arquitetos, em razão do contrato de prestação de serviço, no presente

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capítulo, extensão dele, trataremos das falhas, defeitos ou vícios dos projetos edilícios. Portanto, em primeiro lugar, é preciso deixar claro que será enfocada apenas uma espécie de atuação do arquiteto, dentro do universo das amplas e diversas modalidades de autuação desse profissional. Porém, é talvez a mais significativa e perigosa delas: aquela de, mediante contrato de prestação de serviço, conceber a organização estética e funcional do espaço edificado (“buildings designs”). O estudo recairá, porém, especificamente no desvio dos deveres profissionais: materializando má prestação do serviço, vício é o oposto de qualidade positiva, de perfeição, de idoneidade (= “capacidade de uma coisa, em ordem a outra, ou a algum fim”, no clássico Moraes Silva). Além das obrigações formais listadas no capítulo anterior, a principal obrigação do arquiteto será a de satisfazer os interesses do contratante2 – certo que dentro dos limites da lei que os vícios eventualmente encontrados na obra impedem e obstaculizam.

No mercado da construção civil, “defeito construtivo” expressa conceito amplo e genérico que, em ordenamentos estrangeiros, costuma ser classificado em (i) defeitos ou vícios de construção ou de execução do projeto, (ii) vícios de solo (ou, melhor, de sondagem) ou (iii) vícios de fiscalização3. O presente capítulo abordará, entretanto, um tema pouco explorado que é o dos vícios próprios do projeto arquitetônico edilício (expressão que não é redundância), chamados vícios “de diseño o de concepción” (Andrés Fuster). Não se constituin-

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do de falhas de estrutura ou de sistemas, eles são vícios de atribuição direta e exclusiva ao arquiteto urbanista, cuja atuação profissional é, então, questionada em face de certos padrões pré-estabelecidos pelo estado da arte (“standards expected of the profession”). No século XIV, o arquiteto parisiense Jean Mignot, consultado a propósito da Catedral de Milão, disse que ars sine scientia nihil est. A frase proclama a inconsistência do empirismo em face do conhecimento técnico assentado em cada época histórica e que deve ser necessariamente observado.

Se infringir este dever profissional de “expertise” – agindo, portanto, culposamente –, o arquiteto-projetista por certo causará algum dano ou prejuízo ao contratante no que tange ao resultado final do serviço intelectual, fato que acarretará impacto patrimonial negativo por força do defeito encontrado pelo proprietário, bem ao contrário do que seria de se esperar. Portanto, não se tratam, aqui, de falhas estruturais ou de segurança da edificação (que podem implicar, de fissuras, até eventual desabamento dela) porém de falhas técnicas na atuação do projetista que acabam por causar incômodos, desvantagens e diminuição patrimonial ao proprietário. O contratante pode aceitar a obra como ficou e nada reclamar. Ou então, se este não se satisfez com o trabalho arquitetônico que contratou e pagou, pretenderá a composição do dano sofrido. Como diz decisão do Tribunal Supremo da Espanha (de 1995), “al arquitecto le afecta responsabilidad en cuanto le corresponde la ideación de la obra, su planificación y superior inspección”.

A obra arquitetônica poderá, pois, gerar prejuízos e danos ao proprietário que a contratou derivados de vícios, falhas ou defeitos projetuais, afastando-se das necessidades e exigências previstas ou, como pretendia Mário de Andrade, desatendendo o princípio da utilidade4. Mas reitere-

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se: vício de projeto não é defeito da construção. Isidoro de Sevilha, em suas famosas Etimologias (século VII), afirma que a edificação pressupõe três momentos, a saber, dispositio, constructio, venustas (= ordenação ou, por extensão, planejamento, construção e embelezamento). Os vícios de projeto (“design errors”, “vizi dell’opera” no Código Civil italiano) são vícios de adequação que se originam no primeiro momento, ou seja, bem antes da formação do canteiro que irá materializá-los por um período mais ou menos longo de tempo (lembrando-se que “morar” vem de “demorar”).

Já os defeitos de construção relacionam-se ao segundo momento, portanto à firmitas (= firmeza, consistência, robustez), como referido classicamente por Vitrúvio; ou, nos termos do art. 618 do Código Civil, à solidez e segurança da edificação. Os vícios projetuais se ligam a outros aspectos, notadamente os dois outros heterogêneos princípios vitruvianos da funcionalidade e da beleza (ou, para Alberti, comodidade e prazer) – em confronto desde a Antiguidade –, que não podem ser atribuídos diretamente ao construtor, apenas executor do projeto arquitetônico5. As qualidades da Arquitetura podem ser assim sintetizadas, segundo os diferentes autores, distantes no tempo porém com preocupações semelhantes:

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Sem maior rigor classificatório – porquanto se busca apenas identificar situações específicas para investigar suas consequências jurídicas –, pode-se falar em quatro tipos de vícios dos projetos edilícios, afetando a qualidade não estrutural da obra, que serão em seguida caracterizados.

II Vício de procedimento

O arquiteto será, com certeza, o primeiro agente de defesa da legalidade urbanística. Assim, nos projetos edilícios, podem ser denominados vícios de procedimento aqueles que implicam a desobediência dos trâmites necessários para definição e aprovação do projeto, seja perante os órgãos de fiscalização (notadamente a Prefeitura) seja perante o próprio proprietário. Como se sabe, a complexa metodologia do projeto edilício exige uma série de etapas a vencer: com o promotor, estudos e levantamentos preliminares, anteprojeto (inicial, final), projeto (legal e básico, que se identificam); com os órgãos públicos, licenças e autorizações devidas, tanto para o projeto quanto para a execução e “habite-se” posterior. Enfim, o projeto não surge ex nihilo.

Apesar da relação de confiança com o profissional, cada uma dessas etapas deve ser acompanhada de perto pelo proprietário. Mas não é só isso. Ele deve concordar previamente com cada etapa antes de iniciar-se a etapa posterior, no desenvolvimento projetual – que deve ser, necessariamente, “participativo” já que o arquiteto não edifica para si. Assim, por exemplo, se o projeto final não agradou ao proprietário, o arquiteto em princípio não poderia cobrar o valor integral dos honorários, salvo se comprovar que aquele anuiu expressamente com todas as etapas anteriores. Em outros termos, se o proprietário, tomador do serviço, promotor da edificação, aquiesceu com o trabalho produzido nas etapas preliminares, não poderá discordar do trabalho final. Seria uma agressão ao bom senso e à razoabilidade. Porém é certo que, em todo o processo, o arquiteto deve “guider les choix de son client. Il doit attirer son attention sur les conséquences techniques de ses choix6.

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Em “L’argent” (1891), de Zola, há uma cena que mostra bem o arquiteto tentando orientar o empreendedor que, no romance, procedia à construção de uma obra social (“Oeuvre du Travail”) com base num projeto grandioso levantado com materiais feitos “para desafiar os séculos”. Escreve o autor: “Quando o arquiteto, preocupado, achando supérflua toda essa magnificência (“cette magnificence inutile”), lhe falou da despesa, a princesa interrompeu-o com uma palavra” (Cap. II). Nesse caso, o empreendedor, devidamente alertado, assumiu o vulto do empreendimento que queria.

De outro lado, o procedimento projetual legal implica em controle prévio da Prefeitura. Portanto, se a licença não foi concedida por falha de projeto, o arquiteto pode ser responsabilizado considerando eventual urgência do proprietário, que deverá aguardar a reelaboração do documento com a delonga temporal decorrente: o processo do projeto irá retornar ao ponto anterior. A não concessão da licença, portanto, além de revelar clara deficiência técnica e frustrar as expectativas do proprietário, irá materializar, em tese, prejuízo indenizável deste (lucros cessantes). Como vimos no capítulo anterior, terá sido descumprida a obrigação de resultado qualificada que vincula o profissional desde a contratação. E será ainda mais grave a infração em caso de início da obra sem a licença por “méconnaissance des règlements administratifs” (G. Beaugrand) e, portanto, desconhecimento das obrigações profissionais, podendo isto caracterizar a infração penal do art. L. 480-4 do Code de l’urbanisme, implicando pena de multa e mesmo de prisão.

O art. 18/IX da lei do CAU caracteriza como “infração disciplinar” deixar o arquiteto de observar “as normas legais e técnicas pertinentes na execução de atividades”. Veja-se, pois, que o profissional precisa conhecer e obedecer as normas legais e, a contrario sensu, não poderá ser punido pela corporação se a atividade por ele exercida estiver auto-

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rizada pelas normas jurídicas ou pelo Direito. É o caso muito discutido dos “loteamentos fechados” (ou “condomínios...

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