Vícios Construtivos e a Controvérsia Envolvendo a Eventual Responsabilidade Civil Solidária do Agente Financeiro

AutorAlexandre Junqueira Gomide
CargoEspecialista e Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUSP)
Páginas153-176

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Introdução

Opropósito deste artigo é determinar a eventual responsabilidade civil do agente financeiro nas ações decorrentes de vícios construtivos constatados em imóveis.

Trata-se, naturalmente, da responsabilidade solidária entre o construtor/ incorporador e o agente financeiro. Propomo-nos a investigar, portanto, como poderia o nexo de causalidade ser estendido aos agentes financeiros pela má construção realizada pelo construtor ou incorporador.

Para tanto, faz-se necessário compreender, de forma introdutória, o financiamento imobiliário brasileiro.

O financiamento imobiliário brasileiro é provido, principalmente, por dois sistemas: Sistema de Financiamento Habitacional (SFH) e Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI).

O Sistema de Financiamento Habitacional (SFH) foi criado pela Lei
4.380/64, tendo como gestor financeiro o Banco Nacional da Habitação (BNH) e dependia da política de subsídios oficiais e de recursos da poupança e do FGTS.

Em verdade, tal como nos ensina Rodrigo Xavier Leonardo1, apesar do substantivo habitação, a Lei 4.380/64 apresentava-se como um sistema financeiro, no qual a habitação, progressivamente, acabou tornando-se um dado secundário.

Ainda segundo o autor2, o SFH, em sentido contrário ao discurso asséptico de seus idealizadores, objetivava o cumprimento de funções políticas e econômicas, claramente delineadas. Politicamente, mostrava-se imprescindível controlar a instabilidade social e legitimar o autoritarismo até o ponto de implodir as organizações populares. Como se sabe, a segurança propiciada pelo bem de consumo da habitação representa um dos maiores anseios das classes populares. A satisfação dessa necessidade econômica pelo governo recém-instaurado invariavelmente provocaria a desestruturação de movimentos populares, em razão do desaquecimento de suas reivindicações ante uma ilusória distribuição de moradia pelo Estado.

Politicamente o SFH atingiu o seu objetivo, acalmando e dissipando os movimentos sociais que buscavam moradias. Todavia, o que se viu, na prática, é que o SFH não trouxe a sonhada moradia às pessoas carentes. Ademais, verificou-se que, ao longo da existência do BNH, somente 33,5% das unidades habitacionais financiadas pelo SFH foram destinadas às populações de baixa renda3.

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Diante de todo esse cenário, o SFH, a partir dos anos 1980, perdeu sua força. Segundo Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe4, a elevada inadimplência, por decréscimo da renda pessoal do adquirente mutuário ativo ou aposentado, em contraste com a disparada inflacionária e a consequente elevação do valor gravoso de atualização das prestações, sobretudo do saldo devedor, tornou vulnerável o SFH e impeliu os credores a se valerem massivamente do contencioso de retomada em juízo, entupindo com centenas de milhares de processos o Poder Judiciário, com frustração também para as partes.

A ineficiência do tradicional sistema jurisdicional de recuperação dos créditos e de retomada dos imóveis, por fragilidade da garantia hipotecária, acabou por exaurir os recursos disponíveis e tornar inviável o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com a desativação do BNH, que veio a ser extinto e incorporado seu espólio à Caixa Econômica Federal/CEF, pelo Decreto-lei 2.291/86.

O SFH, após a extinção do BNH, não desapareceu. A Lei 4.380/64 nunca foi revogada. Assim, a partir de 1986 a Caixa Econômica Federal continuava oferecendo financiamentos pelo SFH, embora em volume muito baixo. Até porque a garantia hipotecária tornava-se cada vez mais desprestigiada, sobretudo com a edição da Súmula 308 do STJ, que assevera: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Era o fim da garantia hipotecária. Com isso, o crédito oferecido pela CEF não acompanhava a demanda habitacional que o país requeria.

A partir de 1997, com a edição da Lei 9.514/97, que instituiu o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e, principalmente, criou o sistema da alienação fiduciária de imóveis, o mercado voltaria a crescer.

O Conselho Monetário Nacional (CMN), por resolução, também concedeu autorização às entidades integradas do SFH para adoção da garantia fiduciária de imóveis, instituída pela Lei 9.514/97, em operações de abertura de crédito e concessão de financiamento para aquisição de casa própria. Assim, com a substituição da garantia hipotecária pela garantia da alienação fiduciária, o SFH, que é um sistema social, voltou a prosperar.

Por outro lado, o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), instituído pela Lei 9.514/97, é um sistema de mercado. Segundo o art. 2º do diploma aludido, “poderão operar no SFI as caixas econômicas, os bancos comerciais, os bancos de investimento, os bancos com carteira de crédito imobiliário, as

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sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo, as companhias hipotecárias e, a critério do Conselho Monetário Nacional -CMN, outras entidades”.

De acordo com a Associação Brasileira de Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip5), “o modelo institucional do SFI foi concebido segundo diretrizes da economia de mercado, desregulamentação, desestatização de atividades e desoneração dos cofres públicos, isto é, as operações do SFI são efetuadas segundo as condições de mercado e sua implementação independe de qualquer regulamentação governamental, não envolvendo a aplicação de quaisquer recursos provenientes dos cofres públicos”.

O SFH e SFI distinguem-se em alguns pontos. Em primeiro lugar, enquanto o SFH é um sistema social, regulado e envolvido em inúmeras leis, decretos e resoluções do Conselho Monetário Nacional, o SFI é um sistema de mercado regulado tão somente pela Lei 9.514/97, sendo um sistema objetivo e desburocratizado, com liberdade de negociação entre as partes.

Em segundo lugar, por ser um sistema social, o SFH possui condições de mercado mais favoráveis, com incentivos governamentais. Assim, por exemplo, há limitação de juros em 12% a.a. Além disso, o imóvel pretendido não pode ultrapassar o valor de R$ 750.000,00 (setecentos e cinquenta mil reais). A maior instituição que concede crédito no SFH é notadamente a Caixa Econômica Federal. Já pelo SFI, não há limitação dos juros, muito menos quanto ao valor do crédito a ser oferecido. Várias outras instituições financeiras concedem crédito pelo SFI.

Como convergência, tanto o SFH quanto o SFI possuem sólida garantia, consubstanciada na alienação fiduciária da propriedade, nos termos do art. 17, inciso IV, da Lei 9.514/97. É constituída, portanto, propriedade resolúvel em favor do adquirente. Extingue-se a propriedade fiduciária pelo adimplemento da obrigação pecuniária (art. 25). Inadimplido o contrato, após a devida constituição em mora, consolida-se a propriedade em favor do credor-fiduciário, para venda e excussão da coisa fiduciada (arts. 26 e 27).

Assim, mais uma vez valendo-nos das lições de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe6, o pacto adjeto de garantia fiduciária gera um direito real dominial resolúvel para o credor, através do registro imobiliário do contrato de transferência do imóvel, vinculado à dívida que lhe deu origem, cujo pagamento opera reversão ao alienante, ou em caso de inadimplemento possibilita a consolidação do domínio pleno ao fiduciário para fins de excussão satisfativa extrajudicial específica.

Muito bem.

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Além de tais sistemas de financiamento, destaquem-se, ainda, outros programas assistenciais instituídos pelo Governo Federal. É o caso, por exemplo, do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), regulamentado pela Lei
10.188/01, cujo propósito, segundo o art. 1º, é o atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, sob a forma de arrendamento residencial com opção de compra. A gestão desse programa cabe ao Ministério das Cidades e sua operacionalização à Caixa Econômica Federal.

O PAR é desenvolvido em duas fases distintas. A primeira delas é a de compra de terreno e contratação de uma empresa privada do ramo da construção, responsável por construir as unidades habitacionais. Depois de prontas, as unidades são arrendadas com opção de compra do imóvel ao final do período contratado.

Para atendimento das finalidades do programa, a CEF está autorizada a utilizar os saldos disponíveis do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), Fundo de Investimento Social (Finsocial), entre outros.

A aquisição do terreno pelo sistema do PAR é realizada pela própria CEF, nos termos do art. 4º, IV, da Lei 10.188/2001. Ademais, o parágrafo único do art. 4º, determina que “as operações de aquisição, construção, recuperação, arrendamento e venda de imóveis obedecerão aos critérios estabelecidos pela CEF” (grifamos).

Veja-se, portanto, que ao contrário do SFH, no PAR, a Caixa Econômica Federal adquire o terreno, contrata a empresa responsável pela construção, recaindo a ela a obrigação de avaliar, tecnicamente, a construção a ser realizada. Cabe à CEF a responsabilidade pela construção, comercialização e financiamento aos adquirentes.

Já pelos sistemas do SFI e SFH, a construção recai sobre os construtores e tão somente o financiamento aos agentes financeiros. Até porque, seja pelo...

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