A consolidação do mercado único europeu: os vetores da supranacionalidade e da subsidiariedade

AutorJoana Stelzer; Everton das Neves Gonçalves
Páginas96-102

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1 Introdução

A formação do Mercado Único consistiu em realização basilar da União Europeia, conquista que viabilizou uma série de políticas que vieram na continuidade. 12

A análise político-jurídica dessa conquista representa o enredo desse estudo, que procurou retratar o fenômeno a partir da indefinição de competências entre os Estados-membros e o bloco, sob o enfoque da supranacionalidade e da subsidiariedade. Nesse sentido, foi concedido destaque para a livre circulação de mercadorias, como liberdade inauguradora do processo de integração econômica, destacando-se as iniciativas institucionais da Comissão e do Conselho, através do Ato Único Europeu, do Livro Branco de 1985 e do Relatório Cecchini. O esforço do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) foi registrado através do labor jurisprudencial, enfatizando-se os principais acórdãos que determinaram um irrestrito trânsito de bens no interior comunitário.

Da letra do Tratado da Comunidade Europeia à formação do mercado único, a jurisprudência refletiu o esforço cotidiano da Corte perante o compromisso na formação de um mercado singular, afastando a esperança de um desencadeamento automático na sucessão das etapas de integração, desde a Zona de Livre Comércio até a União Econômica e Monetária.

O presente louvou-se do método indutivo, servindo-se de fontes primárias (especialmente a jurisprudência) e secundárias (pesquisa bibliográfica) para consecução da pesquisa. Quanto aos fins, tratou-se de análise exploratória e explicativa, assegurando estudo ponderado e reflexivo sobre o tema.

2 Da Previsão Normativa à Formação do Mercado Único

A circulação de mercadorias desempenha relevante papel na história do crescimento econômico mundial. A aproximação dos países em blocos de integração regional e as inusitadas construções jurídicas através de Tratados almejam equalizar questões de cunho econômico, político e jurídico, no intuito de reforçar o trânsito de riquezas em um grande mercado.3 O processo de integração europeu resultou da convergência de iniciativas públicas e privadas, mas, principalmente, a partir de estratégias impulsionadas pelo Conselho e pela Comissão por um lado, e, por outro, através da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.

2. 1 O Conselho e a Comissão: impulsionadores do bloco

A integração europeia inaugurou seu projeto de integração desde o término da Segunda Grande Guerra, coincidindo a proposta econômica também com desejo de paz, sob o espírito do fenômeno global. O Tratado da Comunidade Europeia refletia um Tratado-quadro4, fixando objetivos e indicando a trilha que algumas políticas deveriam seguir.

As metas delineadas pela integração, sob o escopo da implantação de um mercado europeu, consistiam, essencialmente, em criar uma união aduaneira com a efetivação das quatro liberdades fundamentais5 e, ato contínuo, a conversão de diversas políticas nacionais em políticas comunitárias. Inicialmente, cumpria vencer as dificuldades atinentes à retirada dos direitos aduaneiros, o que se alcançou com relativa facilidade. Na esfera das medidas não-tarifárias, percebeu-se que a eliminação consistiria em difícil tarefa.

No processo de regionalização, às instituições internas competia a responsabilidade pelo avanço do processo de integração. Na construção europeia, a estrutura institucional caracterizava-se pelo "difícil compromisso entre a necessidade de atribuir um poder efetivo de decisão a órgãos de caráter supranacional e a salvaguarda dos interesses dos seus Estados-membros."6

Afinal, quando os blocos de integração concebem suas instituições para cumprirem determinadas tarefas, o que está em discussão não é simplesmente a repartição de novos Page 97 poderes, "mas 'relações de soberania'. O direito da integração descansa em uma premissa estranha ao direito internacional clássico: a da divisibilidade da soberania."7 A intrincada questão da supranacionalidade, configurando uma inédita estrutura essencialmente política e jurídica, decorre de uma reordenação de valores dos Estados.8

A criação de uma união aduaneira9 consistia em passo inicial da construção europeia, visando à eliminação das restrições tarifárias internas que dificultassem o comércio intracomunitário. De forma insistente, o bloco criava medidas destinadas a estabelecer o mercado comum. Dusan Sidjansky, ao analisar retrospectivamente os projetos de união, constata a persistência de certas ideias-força: o conceito de mercado comum conheceu "uma trajetória sem precedentes que, [...] por sua vez, revela um elo na cadeia da 'criação contínua'."10

Na formação do mercado único, após o ato fundacional do Tratado da Comunidade Europeia (1957), três importantes momentos históricos podem ser identificados: o Tratado do Ato Único Europeu11, o Livro Branco de 198512 e o Relatório Cecchini.13

O chamado Ato Único consistiu em iniciativa necessária aos dilemas econômicos internos, tendo sido elaborado pelo Conselho, o primeiro que se realizou após Jacques Delors ter assumido a presidência da Comissão Europeia. Por ocasião do Ato Único, estruturou-se o projeto "Europa Sem Fronteiras", planejado para 1993. A ideia passara pelo Grupo Crocodilo14, do Parlamento Europeu, então presidido pelo euro deputado Altiero Spinelli. Tais propostas consolidaram um Livro Branco15, que Lord Cockfield, vice-presidente da Comissão, formalizou em 300 medidas legislativas que deveriam ser adotadas progressivamente e que evidenciava a realidade europeia, pouco adaptada ao chamado "Espaço Sem Fronteiras".

Na formação do Mercado Único, buscava-se verificar os custos adicionais acarretados aos bens que não podiam circular com absoluta liberdade, ocasião na qual se reconheceram três tipos de barreiras: a) físicas, concernentes aos diferentes tipos de controle na fronteira, envolvendo pessoas e mercadorias; b) técnicas, relativas às normas nacionais divergentes; e c) fiscais, provenientes das diferenças em matéria de impostos indiretos ou impostos especiais.

Ainda, em 1986, o programa de investigação da Comissão encomendou um estudo que estimasse a chamada "Não Europa" em termos de custo e de ganhos, conhecido por Relatório Cecchini. Jacques Delors, ao escrever o Prefácio do Relatório, revelava sua preocupação com todo o processo ao asseverar que a "construção europeia não é uma panacéia, não devemos esperar uma receita-milagre, mas sabemos que, fora desta, não existe qualquer saída realista para assegurar aos nossos 'velhos países' - em troca de um esforço coletivo e da união das suas forças - um futuro de prosperidade material [...]."16

Em 1996, na Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, intitulado "Impacto e Eficácia do Mercado Único"17, foi feito um balanço das medidas de liberalização, objetivando identificar e avaliar os efeitos econômicos decorrentes da adoção do Livro Branco. Segundo a Comissão, dispondo de "dados precisos"18, o processo de integração foi considerado positivo e reconheceu que a legislação comunitária havia motivado condições de efiácia econômica.

2. 2 O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e o Papel da Jurisprudência

Paralelamente às medidas institucionais promovidas pelo Conselho e pela Comissão, ganhava importância o papel da jurisprudência, impulsionada pelas atividades do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE). O poder judicial comunitário, idealizado para um processo de integração econômica de contornos inéditos e ambiciosos objetivos, não se assemelhava às tradicionais Cortes internacionais. A importância e o significado da Corte tinham que ter relação com o modelo de integração proposto pela Europa, devendo usar, para alcançar esse fim, exclusivamente, o poder do direito.

O período compreendido entre as décadas de 70 e 90 pode ser considerado o mais rico em avanços jurisprudenciais pertinentes à promoção do Mercado Único. Ademais, revelou uma fase de grande comprometimento das soberanias nacionais, resultado do avanço dos interesses integracionistas sobre as defesas pátrias de mercado. Nesse sentido, destacaram-se as decisões Dassonville19, Cassis de Dijon20 e Cinéthèque21. Page 98

Esses processos não deixaram dúvidas quanto às limitações impostas aos Estados-membros, especialmente em matéria de medidas de efeito equivalente às restrições quantitativas22, eliminando obstáculos nacionais que poderiam colocar em risco a configuração de um grande mercado. Do confronto entre as necessidades do mercado europeu e as limitações que os Estados tentavam implantar, resultou um gradual enfraquecimento das competências nacionais.

É preciso ressaltar também que o TJCE foi dotado de competências jurisdicionais amplas, mediante instrumentos processuais capazes de viabilizar a desejada unificação. O sistema jurisdicional da Comunidade Europeia se traduzia, "pelo menos do ponto de vista formal, na mais acentuada originalidade que as Comunidades apresentam face aos cânones clássicos do direito internacional público."23

Aspectos como o método finalista de interpretação e a doutrina do efeito direto e a uniformidade revelaram-se fundamentais para levar adiante o princípio da livre circulação de mercadorias. Sob a perspectiva de Francisco Lucas Pires, o direito comunitário tem "algo de 'pós-moderno'. Além de combinar elementos dos sistemas concorrentes de ' common law ' e 'romano germânico', através de técnicas de harmonização e reconhecimento mútuo, pode, pois, considerar-se intrinsecamente pluralista".24 No entender de Augusto Rogério Leitão, trata-se, sobretudo, de "política-jurisprudencial".25

O Tratado da Comunidade Europeia...

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