Vestígios: o arquivo, o direito, o perdão e a (im)possibilidade de testemunhar
Autor | Katia Kosick - Bruno Lorenzetto |
Cargo | Professora da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná |
Páginas | 102-123 |
Direito, Estado e Sociedade n.36 p. 102 a 123 jan/jun 2010
Vestígios: o arquivo, o direito, o perdão e a
(im)possibilidade de testemunhar
Katia Kosick1
Bruno Lorenzetto2
1. Alegoria e conceitos gerais
O primeiro rastro destas reflexões se apresenta de modo alegórico atra-
vés da utilização derridiana de um mito egípcio constante no Fedro de
Platão. A alegoria se apresenta como um prospecto para a discussão da
problemática que está no cerne das ações do arquivar e testemunhar em
suas ambiguidades de phármakon, ou seja, remédio e veneno da memória,
bem como a relação de poder entre o simples escriba e o rei egípcio. As-
sim, de acordo com Derrida, o rebaixamento daquilo que ele entende por
escritura3 percebe-se desde o citado mito egípcio, o qual descreve a relação
entre o deus Teuth e o e rei Thamous quando o deus apresenta ao rei sua
invenção, a escritura: “Eis aqui, oh, Rei ..., um conhecimento que terá por
efeito tornar os Egípcios mais instruídos e mais aptos para se rememorar:
memória e instrução encontraram seu remédio (phármakon).”; ao que o rei
responde: “Neste momento, eis que em tua qualidade de pai dos caracte-
1 Professora da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Email:
kkozicki@uol.com.br.
2 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Email: bruno_lorenzetto@yahoo.com.br.
3 Segundo Derrida: “A escritura, meio mnemotécnico, suprimindo a boa memória, a memória espontânea,
significa o esquecimento. É bem precisamente isso que dizia Platão em Fedro, comparando a escritura à fala
como a hypomnesis à mneme, o auxiliar lembrete à memória viva. Esquecimento porque mediação e saída
fora de si do logos. Sem a escritura, este permaneceria em si. A escritura é a dissimulação da presença na-
tural, primeira e imediata do sentido à alma no logos”. DERRIDA, 1973, p. 45. Sobre o conceito de escritura
ver: DUQUE-ESTRADA, 2002.
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res da escritura, atribuíste-lhes, por complacência para com eles, todo o
contrário de seus verdadeiros efeitos!”, o rei acreditava que as “almas” se
tornariam mais esquecidas pois deixariam de exercer a memória, deposi-
tando sua confiança no escrito, afirmando que: “Não é, pois, para a memó-
ria, mas para a rememoração que tu descobristes um remédio”. Thamous,
segundo Derrida, não possuía qualquer necessidade de escrever, sua fala
seria suficiente para exercer sua administração de rei dos deuses, de tal
modo que o papel de um escriba seria apenas secundário4.
Relatada a alegoria de tal mito egípcio, fundamental para a reflexão
da tensão que perpassa a relação entre o testemunho e o arquivo, passa-se
a apresentar os conceitos gerais de tais categorias e suas possíveis relações
com o direito. Para tanto, recorre-se às considerações de Ricoeur quanto à
qualificação de tais institutos.
Paul Ricouer expõe que o testemunho:
[...] nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo das ‘coisas
do passado’ (praeterita), das condições de possibilidade ao processo efetivo
da operação historiográfica. Com o testemunho inaugura-se um processo
epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos
documentos e termina na prova documental5.
Existem, inobstante, relevantes distinções quanto às finalidades dos
testemunhos. No plano historiográfico um testemunho volta-se para a
produção de prova documental pertinente a determinada narrativa. No
âmbito jurídico o depoimento perante um tribunal vincula-se à produção
de provas para a elaboração da decisão do magistrado.
O testemunho possui sua especificidade no fato de que “[...] a asserção
de realidade é inseparável de seu acoplamento com a autodesignação do
sujeito que testemunha”6, ou seja, a afirmação de ter vivenciado o mo-
mento empiricamente por parte da testemunha, atestando sua presença no
local de ocorrência dos fatos.
Contudo deve-se manter o horizonte aberto para o entendimento de
que a autodesignação exposta por Ricoeur ata uma história pessoal que
4 DERRIDA, 1997, pp. 21, 22.
5 RICOEUR, 2007, p. 170.
6 RICOEUR , 2007, p. 172.
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