A vertente civilística do instituto das ações regressivas

AutorSilvia Fernandes Chaves
Páginas115-130

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Já tratamos da relação do Direito Social com o Direito Civil, especialmente no âmbito das ações regressivas, concluindo que estas possuem natureza de direito social.

O artigo 120 da Lei n. 8.213/91 dispõe:

Art. 120. Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.

Pela localização geográfica do referido dispositivo legal, que trata dos Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências, estamos diante, sem dúvida, de um direito social, que possui fundamento basilar no instituto da responsabilidade civil.

As questões relacionadas ao custeio e ao aumento demasiado do número de acidentes do trabalho, bem como à necessidade de políticas públicas a fim de diminuir o número desses acidentes, embasam a natureza social do instituto, até mesmo porque, repondo aos cofres da Previdência Social os montantes gastos com os benefícios decorrentes de acidentes do trabalho, referidos valores ficariam disponíveis para outras coberturas sociais.

No âmbito da responsabilidade civil, que funciona como principal fundamento do artigo 120 da Lei n. 8.213/91, estamos diante de dois institutos de Direito Civil. Primeiro, há a responsabilidade civil, fundada na culpa do empregador, quando ele deixa de adotar todas as medidas de saúde e de segurança no meio ambiente laboral, sendo, portanto, o responsável pelo prejuízo causado aos cofres da Previdência Social. Em segundo lugar, estamos diante do instituto da ação de regresso, uma ação eminentemente civil.

No entanto, a nossa maior preocupação é que muitos operadores do Direito estão inclinados a interpretar o artigo 120 da Lei n. 8.213/91 exclusivamente no sentido da responsabilidade civil, buscando a reparação do prejuízo causado.

Tal fato nos preocupa em razão de realmente haver uma conotação social no referido artigo, e parece-nos que tal dispositivo vem sendo interpretado de

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maneira ampla, de modo a autorizar o julgador a aplicar o instituto da responsabilidade civil a qualquer ato do empregador, ou de terceiro.

Se formos dar interpretação civilística, sob a ótica da responsabilidade civil, a todos os fatos que ensejam benefícios previdenciários, logo estaremos nos deparando, por exemplo, com ações regressivas do INSS em desfavor do segurado fundadas na descoberta de que o benefício previdenciário foi implantado em razão de acidente em que o próprio segurado deu causa (culpa exclusiva da vítima), tornando-se uma excludente de responsabilidade.

Cabe observar que essa desmedida interpretação civilística aos institutos de Direito Social pode trazer graves consequências a toda a sociedade, que desacreditará ainda mais nesse Direito Social regulado pelo Regime Geral de Previdência Social.

Dessa forma, entendemos que as ações regressivas possuem, sim, uma vertente civilística, mas é só isso, apenas uma vertente, que deve ser considerada, pois estamos diante de uma regra de Direito Social, até mesmo pela localização geográfica do instituto, que está previsto na Lei n. 8.213/91, uma norma de Direito Social.

A responsabilidade civil em confronto com a solidariedade social

A solidariedade social tem natureza de objetivo constitucional e está estampada no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, ao garantir uma sociedade solidária. Referido objetivo vem publicado novamente no inciso III do mesmo dispositivo, quando fixa também o desígnio da erradicação da pobreza e da marginalização, bem como das desigualdades sociais e regionais. Acertadamente, Wagner Balera sintetiza o objetivo constitucional com uma proposição: "é necessário que cada qual seja solidário com os demais, de tal arte que todas as pessoas tenham mínimas condições de vida".151

A questão da solidariedade social ganha status de direito humano sempre que a interpretamos como fraternidade. Afinal, uma sociedade solidária é uma sociedade fraterna. Nesse sentido, trazemos as lições de Ricardo Sayeg e Wagner Balera para resumir os passos que o magistrado deve seguir para a aplicação dessa fraternidade:

1) considerar todas as partes envolvidas, tendo em mente que são pessoas humanas, revestidas de dignidade;

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2) buscar perceber a aflição em que se encontram, diante do caso concreto;

3) ouvir, com atenção, a versão e as razões de cada uma delas;

4) colocar-se na situação em que elas se encontram;

5) interagir com elas; e

6) aplicar a decisão mais fraterna, que será a que satisfaça a dignidade de todas as pessoas envolvidas, sendo misericordioso onde houver miséria.152

Considerando esses seis mandamentos da postura do magistrado, em se tratando de fraternidade, bem como levando em conta a existência de uma vertente civilística no dispositivo legal do artigo 120 da Lei n. 8.213/91, estamos diante de uma colisão de direitos, pois, enquanto o Direito Social adota a solidariedade e, assim, uma postura fraterna, o Direito Privado, especialmente na responsabilidade civil, adota uma postura patrimonialista e busca tão somente o ressarcimento do prejuízo, enxergando o autor do dano como um vilão. Aliás, aflição nenhuma do autor do dano seria capaz de reduzir a sua responsabilidade, ou mesmo o valor da indenização.

Essa visão patrimonialista da responsabilidade civil impede a plena efetivi-dade do Direito Social, afinal, na visão patrimonialista da responsabilidade civil não existe decisão fraterna.

Talvez esse seja o cerne do problema aqui estudado, pois atribuir uma interpretação exclusivamente civilística à ação regressiva corresponde a abandonar a solidariedade social, o que não seria possível, visto que a ação regressiva é instrumento para dar efetividade à solidariedade diante dos infortúnios.

Recompondo os cofres públicos, por meio dos valores arrecadados com as ações regressivas, estaremos diante da efetiva solidariedade social, garantindo a cobertura das necessidades dos indivíduos que contribuíram para o sistema em busca de uma contrapartida.

Ora, não existe solidariedade social na interpretação civilística? Quando pensamos que o Direito Civil está para regulamentar as questões patrimoniais e que, quando falamos em património, somos severos em garantir a integridade do património de cada um, e assim o fazemos com a responsabilidade civil, que visa a recompor o prejuízo causado, as questões atinentes à solidariedade acabam ficando em um segundo plano e se apresentam muito distantes do ressarcimento efetivo do dano.

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Em contrapartida, sob o enfoque exclusivamente previdenciário, Maria da Glória Chagas Arruda ensina:

A visão mais moderna da seguridade social (concepção distributiva) coloca que o fundamento do direito à seguridade não se baseia no exercício de atividade profissional e na contribuição de cada indivíduo para o sistema, mas encontra-se nas necessidades dos indivíduos, tendo em conta a existência de uma solidariedade natural entre os membros da coletividade nacional.153

Manuel Sebastião Soares Póvoas, por sua vez, prefere chamar solidariedade social de mutualismo. Vejamos:

Nossa vocação mutualista, que encontra seus fundamentos morais no sentimento da solidariedade, olha os montepios com devoção e deseja que eles possam reencontrar o espírito que animou as mutualidades na pureza dos seus objetivos, mas não nos permite que cerremos os olhos à realidade, que desde o momento em que foram criadas as sociedades de capital, abandonou a ideia de previdência lida estritamente à operação mutualista, para formar o consenso de que o interesse previdenciário privado do homem, num conceito de massificação institucional, estará tanto mais difundido, quanto maiores e mais poderosas forem, em termos financeiros, as entidades em que estiver inscrito.154

Desse modo, notamos muitos percalços para dar uma interpretação de solidariedade social às ações regressivas. Contudo, fazê-lo não é difícil, e, na subseção a seguir, demonstraremos essa possibilidade.

A interpretação das ações regressivas deve ser civil ou social?

Partiremos do argumento de que o artigo 120 da Lei n. 8.213/91 engloba um direito social com nuança na responsabilidade civil. Por se tratar de hermenêuticas nitidamente distintas, é forçoso reconhecer que há, sem dúvida, grande dificuldade de encontrar uma interpretação que se amolde ao texto legal.

Carlos Maximiliano aponta que

A Ciência do Direito não é só elemento relativamente criador, apto a suprir lacunas dos textos; mas também um fator de coordenação e de

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exegese; auxilia a eliminar contradições aparentes e atingir, através da letra rígida, ao ideal jurídico dos contemporâneos.155

Com base nos ensinamentos de Miguel Reale acerca da teoria tridimensional do Direito, assim entendida como fato, valor e norma, como um fator de coordenação, e buscando, sobretudo, eliminar contradições aparentes, a Ciência do Direito irá nos auxiliar nessa questão da interpretação das ações regressivas.

Uma forma de realizar uma interpretação mais adequada aos anseios dos direitos sociais parece-nos a maneira trazida por Pietro Perlingieri, quando cuida da despatrimonialização do Direito Civil, que se trata

[...] de tendência normativo-cultural: evidencia-se que no ordenamento fez-se uma opção, que lentamente vai se concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores).156

Embora Perlingieri seja um doutrinador italiano, suas obras ganham o mundo, em razão de estarem baseadas nas transformações sociais, que não são só italianas, mas também globais.

Essa aparente superação do individualismo, consistente no personalismo, bem como a superação da patrimonialidade...

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