Verdade negociada?

AutorMichele Taruffo
CargoProfessor efetivo na Universidade de Pavia
Páginas634-657
Revista Eletrônica de Direito Processual REDP. Volume XIII.
Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ.
Patrono: José Carlos Barbosa Moreira www.redp.com.br ISSN 1982-7636
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VERDADE NEGOCIADA?
1
Michele Taruffo
Professor efetivo na Universidade de Pavia.
Sumário: 1. Algumas hipóteses. 2. A determinação dos fatos. 3. Natureza das
alegações. 4. Contestação e não contestação dos fatos. 5. As consequências da não
contestação.
1. O ponto de interrogação aposto no título destas breves considerações é
devido ao fato de que estas intencionam submeter à verificação um lugar comum muito
difundido, em particular no âmbito da jurisprudência, segundo o qual seria possível
configurar acordos processuais entre as partes relativos à verdade ou à falsidade dos
fatos alegados.
Os limites de espaço sugerem adotar uma forma muito sintética, com a
esperança de que o conteúdo do discurso resulte até claro: explicitarei, mas justificando-
o de modo muito esquemático e certamente insuficiente, algumas premissas que me
parecem indispensáveis, para depois formular algumas observações e algumas
conclusões em tordo da eventualidade de que no processo a verdade dos fatos possa
ser negociada. Digo logo que quem não aceitasse alguma destas premissas, ou não
aceitasse nenhuma, estaria obviamente em radical desacordo sobre as conclusões; pelo
contrário, quem aceitasse todas as premissas deveria provavelmente aceitar as
conclusões que derivam destas.
1) Tendo passado quase ileso através da embriaguez pós-moderna
2
e do
deconstructive vortex
3
dos últimos decênios, tendo a evitar a “personal alienation of a
1
Verità negoziata?” Publicado originalmente nos Quaderni della Rivista Trimestrale di Diritto e
Procedura Civile 11: Accordi di Parti e Processo. Milão: Giuffrè, 2008. Traduzido para o português por
Pedro Gomes de Queiroz. Professor substituto de Prática jurídica Cível da UFRJ, Mestrando em Dir eito
Processual na UERJ, Especialista em Direito Pr ocessual Civil pela PUC Rio, e advogado no Rio de
Janeiro.
2
Trago a expressão, que me parece muito eficaz, de CUSUMANO, Le prove nel discorso storico:
riflessione a margine, in Processo alla prova. Modelli e pratiche di verifica dei saperi, ANDÒ e
NICOLACI (Coord.), Roma, 2007, p. 220.
3
A definição é de BERNARD WILLIAMS, Truth and truthfulness. An Essay in Genealogy, Princeton-
Oxford, 2002, p.3.
Revista Eletrônica de Direito Processual REDP. Volume XIII.
Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ.
Patrono: José Carlos Barbosa Moreira www.redp.com.br ISSN 1982-7636
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fantastic philosofical scepticism which claims to doubt that there is na external world,
or past time, or other minds
4
. Nesta perspectiva formulo então uma primeira premissa:
P1 O mundo externo existe na sua materialidade empírica.
Este enunciado é muito menos óbvio do que possa parecer à primeira vista. Este
corresponde de fato a uma opção realista que parece justificada pelo senso comum e é
acolhida pela maior parte dos filósofos e dos epistemólogos que escreveram sobre ele
nos últimos anos
5
, mas que é recusada por muitos filósofos de orientação cética,
subjetivista ou construtivista
6
e por todos que ainda acreditam na existência do
diabinho de Cartesio
7
. Quem cultivasse verdadeiramente uma dúvida sistemática acerca
da real existência de uma realidade exterior às suas percepções individuais, e não fosse
capaz de distinguir entre conhecimento do real e imaginação fantástica, permanecendo
definitivamente aprisionado no dilema “sonho ou estou acordado?”
8
, dificilmente
poderia concordar com o que direi deste momento em diante.
2) A segunda premissa concerne à possibilidade de falar da veracidade ou
falsidade dos enunciados que dizem respeito a eventos do mundo externo, e pode ser
assim formulada:
P2 Um enunciado no qual se diz que um evento do mundo externo verificou-se assim e
assim, é verdadeiro se aquele evento se verificou assim e assim, e é falso em caso
contrário.
Aceito aqui uma tese ontologicamente muito faticosa, mais dificilmente evitável,
segundo a qual é a realidade de que se fala que faz verdadeiro ou falso aquilo que se diz
4
Para esta definição cf. WILLIAMS, op. cit., p. 10.
5
Na literatura italiana recente cf. v. g. MARCONI, Per la verità. Relativismo e filosofia, Torino, 2007, p.
3 e s.
6
Para uma síntese destas orientações em perspectiva epistemológica cf. GOLDMAN, Knowledge in a
social world, Oxford, 1999, p. 19 e s., 48 e s.
7
Sobre o diabinho de Cartesio cf. v. g. LYNCH, La verità e suoi nemici, tr. it., Milão, 2007, p. 21 e s.
8
A propósito vale a pena recordar o argumento de WILLIAMS, op. cit., p. 131, que soa algo como isto:
se quando estou sonhando não sei se estou sonhando, quando estou acordado não posso dizer se estou
acordado; analogamente, uma vez que se estou morto não posso dizer que estou morto, não posso nem
mesmo dizer que estou vivo.

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