Venda de veículos novos através da internet: reflexos no campo da exclusividade inerente à concessão de veículos automotores

AutorMarcel Queiroz Linhares
Páginas95-120

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1. introdução: importância e delimitação do tema

Dentre as inúmeras transformações que a Internet vem promovendo na sociedade contemporânea assume particular interesse a revolução que este sistema tem ensejado em face dos instrumentos tradicionais de comercialização de produtos. Novas oportunidades surgiram e muitas ainda se apresentarão, o que demandará uma revisão nas regras tradicionais referentes à produçã o, venda e distribuição de mercadorias. Vale recordar, por exemplo, que a Internet, permite ao consumidor escolher junto aos fornecedores de todo o país e até mesmo do Exterior os produtos que deseja adquirir, obtendo acesso a informações sobre os preços praticados no mercado.

O fenómeno repete-se no campo da comercialização de veículos novos. Surgem inúmeros sites que oferecem serviços relacionados à venda de automóveis, seja prestando informações a respeito de mo-delos, equipamentos, preços e disponibilidade em estoque para pronta entrega, seja recebendo pedidos de compra on line, que são repassados às concessionárias que possuam o automóvel solicitado pelo consumidor.

Ocorre que o regime jurídico atinente à concessão de veículos automotores, definido pela Lei 6.729, de 1979, a denomina-da "Lei Ferrari", contém regras que podem obstar a algumas das modalidades de comercialização pela Internet que atualmen-te se apresentam. Assim, e por exemplo, a concessão de automóveis é marcada pela cláusula de exclusividade. De um lado, isto significa dizer que a comercialização de veículos novos é, em regra, reservada à rede de distribuidores, não cabendo tal faculdade aos fabricantes. De outro lado, a exclusividade também se refere ao direito da concessionária de se insurgir' contra a venda de veículos realizada pelas demais concessionárias a consumidor domiciliado na área reservada àquele.

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Quanto ao tema vale recordar matéria publicada no jornal Gazeta Mercantil1 em que se destacou a preocupação das concessionárias, manifestada no X Congresso da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores - Fenabrave, a respeito do impacto que as vendas de automóveis pela Internet já estão promovendo no campo da proteção territorial daquelas revendedoras.

O que se pretende é exatamente verificar em que medida tais serviços podem eventualmente configurar ofensa à aludida cláusula de exclusividade. Todavia, a questão não pode ser integralmente compreendida apenas em face dos dispositivos da Lei Ferrari. Também os princípios constitucionais relacionados à atividade económica, bem como as regras constantes da Lei 8.884, de 1994, que previnem e reprimem as infrações à ordem económica, devem ser tomados em conta.

Com esta finalidade, primeiramente o presente estudo enfrentará algumas questões relacionadas à regulação do mercado por parte do Estado, já que as normas relativas à liberdade de concorrência são instrumentos de que este se vale para desempenhar tal papel. Também se observará que as regras da defesa da concorrência assumem diversas funções, de acordo com a orientação constitucionalmente assumida no campo económico em determinado momento, destacando-se as peculiaridades inerentes ao regime jurídico da livre concorrência tal como configurado pela Constituição Brasileira de 1988. Após tais considerações poderá ser enfrentada a questão da exclusividade na venda de veículos automotores, bem como dos reflexos que eventualmente a venda por meio da Internet possa ensejar neste campo.

2. O Estado regulador

A estipulação, por parte do Estado, de parâmetros de conduta oponíveis aos agen-tes do mercado está intimamente ligada à noção de Estado-programador ou confor-mador da vida social. No campo económico tal poder regulador manifesta-se através da imposição aós particulares de normas gerais ou de condutas específicas que restringem ou condicionam as decisões a serem tomadas pelos agentes do mercado no curso de suas atividades.2 Nestas situações, a regulação económica refere-se principalmente à fixação de condições para a entrada e saída dos agentes económicos em determinada atividade, bem como às condições em que tal atividade se desenvolve -vale dizer, refere-se às decisões envolvendo o quantum de produção, as zonas ou mercados em que cada empresa atua, os preços ou retribuições que são recebidos em remuneração pela prestação da atividade etc.3

Quanto ao âmbito do presente tema,4 Eduardo J. Rodrigues Chirillo observa que, no que se refere à imposição de regras de

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comportamento aos agentes económicos, a atividade reguladora do Estado no domínio económico deverá ser conforme ao mercado e observar o princípio da subsidiariedade da atuação estatal.5

Chirillo destaca que a intervenção es-tatal será conforme ao mercado quando atender aos princípios fixados na constituição económica baseada em uma economia de mercado. Já, ao revés, serão desconfor-mes as intervenções que puserem em perigo os fundamentos do regime liberal, inerentes ao sistema de mercado, alterando artificialmente a mecânica da formação dos preços e da concorrência. Em outras palavras, a intervenção estatal deverá atender ao princípio da livre concorrência, de forma a tornar mais efetiva tal liberdade. O princípio refere-se - como destaca o mencionado autor - à situação em que "qualquer sujeito pode livremente, em igual condição legal que seus competidores e em qualquer mercado, iniciar o exercício de uma atividade económica, fixando livremente os preços e as circunstâncias de exercício daquela atividade".6

Isto porque - como observa Chirillo -é por meio da competição múltipla e rival que sé obtêm a melhor rentabilidade dos investimentos realizados, a incorporação de mudanças tecnológicas, bem como o atendimento dos interesses dos consumidores, já que um mercado livre garante preços mais ajustados aos bens produzidos. Portanto, através da regulação, económica o Estado deverá atuar na promoção e prote-ção da concorrência, o que fará afastando acordos cònlusórios, monopolísticos ou abusivos,7 de forma a proteger os interesses dos consumidores nas situações em que a concorrência seja de difícil ou impossível verificação. Em suma, a função reguladora de um Estado fundado na economia de mercado deverá ser desempenhada de modo a incrementar a concorrência sempre que seja possível, mas nunca pretendendo substituir o próprio mercado.8

De outro lado, pode-se dizer que tal. entendimento é manifestação do princípio da atuação subsidiária do Estado, segundo o qual o Estado deve, de um lado, abs-ter-se de desempenhar atívidades que os particulares têm condições de exercer por sua própria iniciativa e com seus próprios recursos e, de outro, também deve fomentar, coordenar, fiscalizar, a iniciativa privada, possibilitando aos particulares sucesso na condução de seus empreendimentos.

Gaspar Arino Ortiz esclarece que o princípio da subsidiariedade da atuação estatal decorre do fato de que, ainda que se atribua ao Estado a missão de declarar quais os objetivos que deverão ser considerados como de utilidade pública, isto não implica dizer que caiba exclusivamente àquele promover tais interesses. Em verdade, o Estado é um instrumento a serviço da sociedade, cabendo-lhe estimular, coordenar e incrementar a atuação da iniciativa privada.9

No campo económico a subsidiariedade da atuação estatal revela-se em dois planos. De uma parte, o Estado deverá atuar apenas diante da inércia ou ineficiência da iniciativa privada, de forma a corrigir suas deficiências. Por isso, Eduardo J. Rodrigues Chirillo observa que, por imposição do aludido princípio, caberá a atuação do Estado, no sentido de promover uma ordem concorrencial em que a liberdade de empresa não seja eliminada, apenas diante das situações em que a atividade privada seja remissa ou se encontre ausente ou, ainda, não esteja suficientemente protegida contra a manipulação da livre concorrência.10

De outra parte, tal subsidiariedade também deverá ser observada quanto à intensidade da medida interventiva necessária à satisfação do interesse visado. O princípio exige que a atuação estatal adote o

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modo menos restritivo à liberdade económica dos particulares: demanda proporcionalidade no uso dos poderes públicos, de forma que tais medidas sejam adotadas com a intensidade que permita, de um lado, a satisfação do interesse que por meio delas se busca tutelar e, de outro, promover, na medida do possível, a realização da liberdade económica privada.

Deste protagonismo privado na consecução de fins comuns decorre a atribuição ao Estado da tarefa de proporcionar aos particulares técnicas e promover estímulos que orientem os setores privados da economia, segundo as linhas traçadas em determinado plano. Trata-se do aludido papel programador, por meio do qual ao Estado já não mais interessa tanto assumir o papel de produtor de bens e serviços. Ao revés, este novo Estado busca promover a coordenação e cooperação com as empresas privadas, de forma a estimular a ativi-dade dos particulares e lhes permitindo levar adiante os programas nacionais. Como já se antevê, trata-se de intervenção do Estado no domínio económico, tal como será melhor observado a seguir.

3. A tutela da concorrência por meio da intervenção do Estado na economia

Javier Viciano observa que, em decorrência das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, os sistemas jurídicos ocidentais adotaram uma corrente de pensamento que proclama, ainda que apenas formalmente, a igualdade...

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