A venda de bens de consumo - os meios de tutela do comprador

AutorRui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde
CargoProfessor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Páginas49-72

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EXCERTOS

"NO concernente à disciplina geral da compra e venda em PorTUGAL, são de fato várias e ponderosas as razões que justificam a existência de um regime especial para a venda de bens de consumo"

"Para repor a conformidade, o consumidor pode exigir a reparação do bem, que consiste na eliminação do defeito ou na introdução das alterações necessárias para que o produto adquira o estado contratualmente estabelecido"

"A livre escolha do consumidor entre os diversos meios de tutela ao seu dispor, só poderá ser travada quando a sua pretensão representar uma desvantagem muito maior para o vendedor do que a vantagem que ele obtiver, em comparação com as outras soluções"

"OS limites à responsabilidade direta do produtor (e do seu representante) perante o consumidor apenas resultam da eventual impossibilidade da solução ou da sua desproporção"

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Introdução

Entre os objetivos visados pelo legislador comunitário com a adoção da diretiva 1999/44/ce, respeitante a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, avultou a finalidade de facilitar a livre circulação de mercadorias, evitando distorções de concorrência e eliminando a insegurança criada pela diversidade de regimes, criando um corpo mínimo de regras nucleares que fossem aplicáveis independentemente do estado-membro em que os bens fossem vendidos.

Para fortalecer esse desiderato, contribuiu também o reconhecimento de que era necessário modernizar as regras nacionais sobre venda de coisas defeituosas, concebidas para reger modelos de produção e aquisição de bens ultrapassados (hoje predomina o modelo da venda de coisas genéricas, ao contrário do que sucedia no passado, em que prevalecia o modelo da venda de coisas específicas) ou sobre relações económicas superadas (entre produtor/vendedor e comprador/ consumidor) que, em muitos casos, já não refletem as atuais condições da produção, distribuição e consumo em massa1.

1. A insuficiente proteção dispensada ao consumidor pelo regime geral da compra e venda

No que concerne à disciplina geral da compra e venda em PorTUGAL, são de fato várias e ponderosas as razões que justificam a existência de um regime especial para a venda de bens de consumo.

Por um lado, a disciplina comum cria uma distorção grave em prejuízo do comprador, ao excluir a responsabilidade do vendedor quando desconheça sem culpa, nos termos do artigo 914º, cc, o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece, fazendo assim recair sobre o adquirente esse risco. Como o comerciante age como simples distribuidor do produto, não lhe seria difícil ilidir a presunção de culpa que baseia o referido dever de reparar ou substituir a coisa defeituosa, assim como a indenização do dano negativo, prevista no artigo 915º e a própria responsabilidade contratual comum pelo interesse positivo (artigo 799º/1), uma vez que o vendedor se limita em regra a transmitir

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a coisa ao consumidor tal e qual como a recebeu do seu fornecedor. Em contrapartida, o vendedor de bens de consumo responde objetivamente perante o consumidor, sem prejuízo do direito de regresso que lhe assiste contra o profissional a quem adquiriu a coisa (artigo 7º, n. 1, do dl 67/2003, de 8 de abril, com as alterações introduzidas pelo dl 84/2008, de 21 de maio).

Por outro, o regime geral também estabelece prazos demasiado curtos de denúncia dos vícios ou defeitos das coisas móveis e de caducidade da ação de garantia (30 dias depois de conhecido o defeito e dentro dos seis meses após a entrega da coisa), sobretudo porque contados a partir da entrega da coisa (artigo 916º/2, in fine) e não do momento em que o comprador conheceu ou devia ter conhecido o vício, de forma a não desacautelar os vícios ou defeitos que apenas se revelam com o uso intensivo e prolongado da coisa. Neste último sentido, aponta corretamente o disposto no artigo 5º - A, n. 2, do dl 67/2003, o qual estipula que os prazos de denúncia da falta de conformidade se contam da data em que tenha sido detectada.

Em terceiro lugar, segundo o regime comum, caberia ao consumidor fazer a prova da existência do vício à data da entrega para desencadear o funcionamento da presunção de culpa do vendedor (artigo 799º/1, cc), tarefa que lhe seria em regra praticamente impossível de se desenvencilhar por incapacidade técnica e económica para custear a intervenção de peritos. AO invés, o artigo 2º, n. 2, do dl 67/2003 criou quatro presunções de desconformidade que correspondem às situações em que o consumidor está tipicamente carecido de proteção, facilitando consideravelmente o seu trabalho probatório, auxiliado ainda pela presunção de que já existiam à data da entrega as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega de coisa móvel ou imóvel, respectivamente (artigo 3º, n. 2, do dl 67/2003).

Em quarto, o regime geral da compra e venda estabelece uma diferenciação contestadíssima em matéria de coisas defeituosas, cuja aplicação às relações de consumo poderia importar uma considerável desproteção do consumidor.

Com efeito, nos termos conjugados dos artigos 913º e 905º, se a coisa adquirida pelo comprador já era defeituosa ao tempo da

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celebração do contrato, a lei entende que existe erro do adquirente ao comprar uma coisa com defeito, sendo o contrato anulável por erro nos termos gerais. SÓ haverá cumprimento defeituoso se, nos termos do artigo 918º, o defeito na coisa imputável ao vendedor for posterior à celebração do contrato. Esta solução também se aplica aos casos em que a venda tem por objeto uma coisa futura ou indeterminada de certo género, dado que ainda não existindo a coisa ao tempo da celebração do contrato ou não estando determinada, não pode obviamente existir erro do comprador, pelo que se deve aplicar o regime do cumprimento defeituoso.

Tal disparidade de regimes traz consequências inaceitáveis, como tem vindo a ser evidenciado por alguns exemplos sugestivos dados pela doutrina portuguesa. Se o comprador escolher um anel numa ourivesaria e posteriormente descobrir que ele tem um risco, terá que demonstrar que incorreu em erro para obter a anulação do negócio, apenas tendo direito à restituição do preço e a uma indenização pelos danos emergentes com base no interesse contratual negativo (artigos 915º e 909º), solução que, em regra, ficará muito aquém da cabal satisfação dos interesses do consumidor. PorÉM, se encomendar um anel à ourivesaria e o vendedor lhe entregar o anel riscado, considera-se existir incumprimento nos termos do artigo 918º, sendo a indenização delimitada pelo interesse contratual positivo2.

Esta dualidade de soluções é de fato injustificável. Em qualquer dos casos existe incumprimento da obrigação de entrega, uma vez que o vendedor deve sempre proceder à entrega da coisa em conformidade com o contrato, o que não se verifica no caso de existir defeito e independentemente de ser anterior ou posterior à celebração do contrato. Para evitar tal aporia, a necessária unificação de regimes sob o quadrante do cumprimento defeituoso foi levada a cabo pela convenção de viena sobre a venda internacional de mercadorias de 1980 e pela diretiva comunitária 1999/44, sobre a venda de bens de consumo e garantias associadas, transposta para a ordem jurídica nacional pelo dl 67/20033.

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Finalmente, as necessidades de proteção estendem-se igualmente aos terceiros adquirentes, em face dos quais o contrato é uma res inter alios, pelo que nunca lhes poderia ser aplicável a disciplina civil da compra e venda. No sentido oposto, determina o artigo 4º, n. 6, do dl67/2003 que os direitos legais do consumidor se transmitem ao terceiro adquirente do bem.

Em suma, o regime geral, porque pensado em abstrato para reger o modelo indiferenciado vendedor/comprador, desconsidera as particularidades que individualizam a posição do adquirente enquanto consumidor, designadamente os fins de uso do bem que o animam em lugar do seu valor de troca, assim como a desigualdade de qualificações técnicas e de poder económico que limitam a sua força negocial, que acabam por o sujeitar a um ónus excessivo de verificação das qualidades e idoneidade da coisa para o fim previsto (caveat emptor), ao arrepio do sentido prosseguido pela evolução legislativa das últimas dezenas de anos de reforçar a proteção do comprador contra os defeitos da coisa vendida (caveat venditor)4.

2. O regime especial da venda de bens de consumo A garantia contratual injuntiva da qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo. A garantia legal de conformidade e a responsabilidade do vendedor pelos vícios da coisa vendida

Em contrapartida, o regime especial da venda de bens de consumo obedece ao escopo fundamental de proteção do consumidor, reconhecendo-lhe o direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo, consagrado no artigo 4º da lei 24/96, de 31 de julho, e nos termos do qual tais bens e serviços devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor. Esta garantia contratual injuntivamente imposta pelo artigo 16º do mesmo diploma legal veio depois conhecer uma densa concretização oferecida pelo artigo 2º, n. 1, do dl 67/2003, de 8 de...

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