Velhas e novas mídias: estratégias de acesso da crítica criminológica ao discurso público sobre o crime

AutorMarília de Nardin Budó
CargoDoutora em Direito pela UFPR, Mestre em Direito pela UFSC. Professora do PPGD da Faculdade Meridional
Páginas471-501

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Marília de Nardin Budó1

Recebido em 1.4.2016

Aprovado em 5.6.2016

Resumo: O acesso ao discurso através dos meios de comunicação tem sido historicamente obstruído pela maior parte das pessoas destituídas de poder econômico e político. Em razão disso, a utilização de fontes oficiais pelo jornalismo possui a tendência de conservação do status quo. O mesmo se pode afirmar em relação às notícias sobre crimes que reproduzem cotidianamente o estereótipo do criminoso perseguido pelo sistema penal: pobre, negro e periférico. A crítica dos meios de comunicação pelos criminólogos críticos não pode vir, porém, destituída de estratégias que busquem romper com esse processo. Nesse contexto, este trabalho busca, através de pesquisa bibliográfica exploratória interdisciplinar, questionar diferentes meios através dos quais deve a academia atingir o público. As principais estratégias estudadas são a busca por rupturas nas velhas mídias; a luta pela democratização dos meios de comunicação e o uso das novas mídias como instrumento de publicação de discursos contrahegemônicos sobre o crime, sempre na interação com os movimentos sociais.

Abstract: The access to the speech through the mass media has historically been obstructed to most people deprived of economic and political power. Because of that, the use of official sources by organizational journalism has the trend of conservation of the status quo. The same can be said for the news about crimes that daily reproduce the stereotype of the criminal pursued by the criminal justice system: poor, black and marginal. The criticisms about the mass media by critical criminologists cannot come, however, devoid of strategies that seek to break with this process. In this context, this work aims, through interdisciplinary bibliographical research, to question different ways in which the academy should reach the public. The main strategies studied are: to search for breaks in traditional mass media; the struggle for the democratization of the media; and the use of the new media as a tool for publishing counter-hegemonic discourses on crime, always in interaction with the social movements.

Palavras-chave: Criminologia; Meios de comunicação; discurso midiático; democratização dos meios de comunicação; novas mídias.

Keywords: Criminology; mass media; media discourse; democratization of the mass media; new media.

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Introdução

A produção da notícia pelos veículos de comunicação hegemônicos passa por um processo repleto de escolhas a serem feitas pelo próprio jornalista, pelos editores, e mesmo pelos seus proprietários. Essas escolhas perpassam questões como: pauta, enquadramento, fontes das notícias, léxico, ordem, entre outras, e têm como critérios questões organizacionais, ideológicas, econômicas, políticas etc. Tudo isso para dizer que o produto desse processo não é um resultado necessário; não é um espelho da realidade; é um constructo social.

Isso não significa, porém, que os veículos que se dizem jornalísticos possam legitimamente criar uma realidade que se afasta completamente dos fatos, pois, por detrás dessa mercadoria que hoje se tornou a notícia, o jornalismo possui uma história que deve ser lembrada e cobrada. A liberdade de imprensa, junto da liberdade de informação e do acesso à informação são direitos que, a despeito de sua base política liberal, traduzem uma mensagem bem mais profunda do que pretendem os defensores do liberalismo econômico: a regulamentação dos meios de comunicação, antes de buscar qualquer tipo de censura estatal, tem o condão de garantir o pluralismo, o acesso, a diversidade, todos eles princípios fundamentais da democracia.

É muito em razão da oligopolização do mercado das comunicações no Brasil e no mundo que se vê cotidianamente a legitimação discursiva, através da mídia hegemônica, dos mais profundos preconceitos enraizados nas culturas locais, nacionais e mesmo internacionais. No que tange ao crime, que é o objeto central deste trabalho, o resultado do processo descrito acima tem como consequência a delimitação política dos inimigos da sociedade, sempre na interação com a ação seletiva do sistema penal, controlado por poucos detentores de poder político e econômico. Aquelas pessoas que serão os bodes expiatórios tornam-se facilmente o foco tanto do recrutamento de clientela para as prisões, quanto de personagens para os espetáculos midiáticos. Elas servem, ainda, para auxiliar no ocultamento dos crimes de maior danosidade social provocados pelos poderosos.

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O marco teórico deste trabalho é a criminologia crítica, entendida como a construção de uma teoria materialista, isto é, econômico-política, do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização. A criminalidade, nesse marco, não possui status ontológico ligado a certos comportamentos de indivíduos cujo estudo específico determinará as causas do desvio, mas é, isso sim, uma qualidade atribuída aos mesmos, mediante uma dupla seleção: a criminalização primária - “seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais” – e a criminalização secundária – “seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas” (BARATTA, 2002, p. 61). Desse modo, a seleção operada pelo sistema penal e repercutida pelos veículos de comunicação hegemônicos não constituem tampouco o resultado necessário da busca aos “criminosos”, mas uma etapa do processo de construção social do crime, que, simultaneamente à rotulação dos grupos mais vulneráveis da sociedade como desviantes/criminosos/ perigosos, imuniza os poderosos.

Diante da necessidade de se buscar alternativas a essa realidade tão denunciada por pesquisas científicas no âmbito da criminologia no mundo inteiro, este artigo busca avaliar algumas dessas possibilidades. Através de pesquisa exploratória bibliográfica interdisciplinar, trata-se inicialmente sobre o problema do acesso na construção das notícias (1), para, em seguida, partir para a análise das estratégias de ação midiática contra-hegemônica que hoje já trazem redefinições do que é crime e de quem são os criminosos. Trata-se de analisar tanto as possibilidades de explorar os meios de comunicação tradicionais (2), na pequena margem em que se pode mover dentro da ausência de regulação que existe hoje (2.1), mas, ao mesmo tempo, lutar pela democratização dos meios de comunicação (2.2) e, claro, utilizar as novas mídias como instrumento de contra-hegemonia (2.3).

A construção das notícias sobre crime e o interesse (do) público: o “quarto poder” em xeque

A passagem da fase político-literária do jornalismo, no período das revoluções burguesas, à sua fase comercial, foi acompanhada de mudanças fundamentais na sua estrutura. Para independer-se dos sindicatos e dos partidos políticos, outro tipo de

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financiamento passou a ser necessário: a publicidade (TRAQUINA, 2004). Na busca pelo lucro, o número de leitores também deixou de ter um caráter direto de influência política e adesão a determinados movimentos, mas sim, passou a se converter em cifras e conformismo político com o status quo. Não romper com pontos de vista tradicionalmente aceitos passou a ser uma praxe, determinando diretamente a linha editorial dos jornais, o que potencialmente veio a agradar, a uma só vez, o público e os anunciantes. Também para angariar o maior número de consumidores, a isenção ideológica e a credibilidade das notícias se tornaram valores fundamentais da prática jornalística. O caráter revolucionário do jornalismo desapareceu da maior parte dos veículos, tendo permanecido apenas nos pequenos jornais, panfletos, fanzines, entre outros produtos dos movimentos de resistência e contracultura, dentro da chamada “mídia radical” (DOWNING, 2004).

Com a transformação do jornalismo, alguns valores passam a ser exigidos na sua prática, como “a procura da verdade, a independência, a objetividade e uma noção de serviço ao público” (TRAQUINA, 2004, p. 34). A crescente comercialização dos jornais trouxe também a profissionalização dos jornalistas, atividade a qual antes era realizada pelos intelectuais em geral. Através de diversas técnicas, a opinião será cirurgicamente ocultada das matérias informativas, e exposta claramente em outros gêneros jornalísticos como a coluna, o artigo, a entrevista, o editorial, a carta ao leitor etc. Trata-se do coroamento do famoso princípio da objetividade jornalística: nega-se o sujeito que instrumentaliza a linguagem.

Trata-se, porém, de uma construção fundamental para a legitimação do discurso jornalístico como verdadeiro. No contexto do liberalismo revolucionário, a ideia de uma imprensa livre e independente se fundamentava na própria teoria da separação dos poderes: caberia, então, ao jornalismo, o papel de controle e fiscalização do Executivo, Legislativo e Judiciário (MORETZSOHN, 2007, p, 116). É o que se convencionou chamar de o “quarto poder”. Porém, o mercado de notícias, ao contrário de forjar a liberdade de imprensa, trouxe muito mais comprometimento da mídia com a busca desesperada por lucros, longe, portanto, da preocupação com o republicanismo. Como nota Moretzsohn, “no mundo das grandes corporações da Idade Mídia, a imagem do jornalismo como mediador associada à idéia de ‘quarto poder’ só pode sobreviver como nostalgia de um tempo que talvez jamais tenha existido” (MORETZSOHN, 2002).

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A simultânea naturalização da ideia do “quarto poder” e da notícia como mercadoria é um evidente paradoxo. Enquanto o primeiro imprescinde de uma...

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