Direitos sociais e eficácia horizontal dos direitos fundamentais: possíveis consequências práticas para o exercício do poder disciplinar do empregador

AutorAntonio Rodrigues de Freitas Jr.
CargoMestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela Faculdade de Direito da USP, cujo quadro docente integra como Professor Associado
Páginas22-29

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É mesmo lugar comum afirmar que o primeiro momento de afirmação dos direitos humanos fundamentais correspondeu ao imperativo de conferir ao ser humano — cidadão ou não — garantias e proteções que o preservassem dos excessos do Estado.

Nesse sentido, portanto, não é demasiado admitir que os direitos humanos fundamentais nasceram, se não contra o Estado como enti-dade abstrata, ao menos seguramente como negação dos poderes absolutos do “Príncipe”; vale dizer: como limitação e contenção à ação daquele ou daqueles que se encontram no exercício dos poderes coercitivos do Estado1.

Já num estágio posterior, incorporaram-se, ao feixe dos assim chamados direitos humanos fundamentais, outras figuras que, por sua natureza menos constritiva, absenteísta e negativa (relativamente aos poderes do Estado), conferiam ao Estado o dever de ofertar prestação positiva2. Nessa segunda projeção dos direitos

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humanos fundamentais, caberia ao Estado não apenas abster-se de excessos lesivos ao patrimônio jurídico de seus súditos, como também, mediante ações promocionais e distributivas, assegurar-lhes um mínimo de proteção social apto a lhes preservar a dignidade humana.

Há nesse exercício de categorizações muitas variações, tanto terminológicas quanto mais claramente conceituais. Há, por exemplo, quem fale em garantias positivas de liberdade, procurando realçar um direito que nasceu contra o soberano absoluto, mas que, já num cenário de liberdades públicas, passou a impor, até mesmo ao próprio soberano, o dever de prover medidas comissivas visando à sua garantia; em especial quando toldadas pela desigualdade entre particulares. Há também — e aqui se tenha apenas por mais um exemplo — quem fale em direitos de proteção. Não, propriamente, de proteção endereçada ao ser humano contra situações ou contingências econômicas e sociais que lhe sejam capazes de comprometer a dignidade. Diversamente, ainda nessa acepção, os direitos de proteção são caracterizados como aqueles que se destinam a obrigar o Estado a proteger os indivíduos ou os grupos sob seu poder soberano, que tenham suas liberdades ou direitos fundamentais ameaçados pela ação — atual ou potencial — de terceiros3.

1. Com essas breves remissões introdutórias objetivei apenas pôr em realce que, seja em sua acepção negativa, seja em sua projeção comissiva, promocional e, portanto, positiva, os direitos humanos fundamentais, em particular na segunda metade do século XX, tiveram o Estado como eixo de gravidade. Em outros termos: as autoridades públicas, seus agentes, e os Poderes Públicos são os destinatários imediatos do comando subjacente aos direitos humanos fundamentais. Por outro lado, os seres humanos sob seu poder soberano, reconhecidos como titulares de direitos “ante o Estado”. A esse figurino de predicação originária convencionou-se designar eficácia mediata ou vertical dos direitos fundamentais. Ora bem, eficácia: 1. vertical, porque destinada à proteção do súdito diante do soberano — vale dizer, do ser humano diante do Estado; e
2. mediata, porque não endereçada à disciplina direta e imediata das relações jurídicas entre particulares, às quais o sistema jurídico reservara os veículos ordinários do direito privado e da jurisdição comum.

A premissa desse modelo de reconhecimento dos direitos fundamentais, predominante no primeiro momento de sua afirmação — essencialmente liberal, diga-se de passagem — residiu na aceitação de que, uma vez removidos os obstáculos de natureza estatal (públicos) oponíveis à liberdade e à igualdade entre particulares, não remanesceriam motivos para invocar a força normativa qualificada de direitos humanos fundamentais para interferir na relação entre atores privados.

Em bom vernáculo: 1. o primeiro não dito desse modelo consistiu no reconhecimento de que o sistema jurídico ordinário, de direito privado, seria suficiente para dar conta da disciplina das relações jurídicas entre sujeitos “formalmente iguais”, prescindindo da eficácia qualificada de direitos fundamentais e 2. o segundo, não menos eloquente, residiu na correspondente desqualificação das desigualdades e assimetrias, materiais e até formais, que presidem muitas das relações entre atores não estatais. E isso porque, como suspeito, se o figurino liberal e individualista dos direitos humanos fundamentais foi capaz

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de reconhecer os riscos da dominação e do poder infenso a limites, não o foi para conferir a devida importância aos ingredientes de poder e de dominação — na acepção weberiana — que engendram e perpassam as relações entre sujeitos não estatais. Ainda em termos weberianos, se levou em conta o Estado, ignorou outras espécies de “associações de interesse” no interior das quais relações de mando e de sujeição verificam-se presentes.
2. Mais recentemente, tem sido comum observar que esse modelo ortodoxo de eficácia dos direitos humanos fundamentais vem sofrendo crescentes temperos.

O pano de fundo desse itinerário de mudança reside no progressivo reconhecimento de que, também no âmbito de relações entre sujeitos não estatais, estão presentes diversas modalidades de exercício de poder que, para que seja exercitado de forma legítima, necessita observar, em muitos de seus traços, os limites e procedimentos que legitimam o exercício da auto-ridade pública. E assim não porque se cuide de sujeitos delegatários de poderes originariamente radicados na esfera pública; mas porque titulares de um poder que o sistema jurídico e o direito — privado — confere diretamente ao sujeito — também privado.

Esse é o caso de todo o chamado poder disciplinar que é exercitado no interior das entidades associativas (gremiais, sindicais ou corporativas), societárias, condominiais, e até mesmo no plano mercantil das concessões, das franquias etc.

Nem é preciso lembrar ser esse também, tipicamente, o caso do poder disciplinar que o empregador exerce em relação à conduta do empregado; não por acaso qualificado “subordinado”, enquanto uma das projeções do chamado poder diretivo (ao lado do poder de comando e do poder de fiscalização ou de supervisão).
3. Até bem pouco, a quem quer que, sob o ângulo do direito do trabalho ou do direito constitucional, fosse indagado: os direitos humanos fundamentais — em especial o direito à ampla defesa — devem ser observados nos procedimentos disciplinares praticados no âmbito das relações de trabalho não estatais? A resposta seria tendencialmente pela negativa.

Respeitados os direitos infraconstitucionais porventura dispostos em lei, no estatuto social ou em convenção coletiva (conforme o caso), e, naturalmente, assegurada a possibilidade de posterior revisão judicial (quanto ao mérito da sanção aplicável), não haveria lugar para invocar a nulidade formal in procedendo, ante a...

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