Valores mobiliários, especulação e consequências jurídicas

AutorLeandro Bittencourt Adiers
Páginas160-181

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Introdução

O estudo que segue aproveita uma pesquisa efetuada na defesa judicial de cessionários diante de pretensão anulatória de cessões onerosas tendo por objeto ações, instrumentalizadas através de procurações com poderes em "causa própria". Os negócios jurídicos questionados se deram em período anterior à abertura de capital da companhia emissora, bem como de sua privatização, centrando-se a irresignação dos cedentes na utilização "dolosa" de "informações privilegiadas" que teriam implicado em indução em "erro" dos cessionários, que concluíram o negócio por preço "vil" por desconhecerem o valor patrimonial das ações, superior ao preço ofertado e aceito.

A informação técnica em matéria financeira e económica dentro da literatura jurídica é extremamente escassa, o que obriga o profissional que incursiona sobre o tema a buscar bibliografia específica. O resultado é a inter-relação dos conceitos económicos em torno das definições jurídicas, possibilitando a interpretação inte-grativa dos fatos, e, conseqiientemente, a adequação entre a norma e a realidade, simultaneamente sustentáculo e alvo de toda a construção legislativa.

A carência de precedentes jurispru-denciais na matéria, bem como a escassez de doutrina específica sobre o funcionamento do mercado de capitais, dos requisitos legais e natureza jurídica dos contratos pactuados neste mercado, exigiu uma leitura heterogénea e o resultado desta incursão é o que agora se apresenta ao leitor interessado pelo tema.

Chega-se a conclusões interessantes a partir das definições de valor, preço, risco,

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variáveis, livre iniciativa, especulação, manipulação, informação privilegiada, boa-fé e lealdade contratual, implicando numa reavaliação do papel mercadológico do especulador, o que, obrigatoriamente, reabilita a sua imagem perante a sociedade, distorcida pela má informação.

I - A política económica nacional

Ao abordar a questão, é preciso, inicialmente, situá-la no contexto jurídico e económico vigente, buscando as diretrizes básicas que vão orientar a interpretação e enquadramento dos fatos.

Na Constituição Federal de 1988 temos positivado, no art. 1-, como Principio Fundamental em que se apoia o nosso Estado Democrático de Direito, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso V).

Dentre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, temos positivado nos incisos II e XIII do art. 59 da CF/88: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei" (II) e "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" (XIII).

O Projeto de Reconstrução Nacional, divulgado em 1991, ano em que foi editada a Lei de Informática, que suprimiu a reserva de mercado e possibilitou a importação e fabricação interna de equipamentos e programas através de empresas multinacionais, colocou em discussão, entre outros temas, a redefinição dos monopólios constitucionais da União, o fim da discriminação constitucional contra o capital estrangeiro, a revisão das normas de propriedade industrial, das normas de concessões e da Lei das S/A, a desregulamentação dos serviços portuários etc, visando, entre outros objetivos, atrair investimentos internacionais ao país.

Na concepção das autoridades governamentais da época, a abertura de merca-do, as privatizações e a desregulamentação eram as medidas indispensáveis para que o país não fosse excluído da "revolução mi-croeletrônica", período em que a rápida aceleração do progresso técnico em nível global reduzia vantagens comparativas tradicionais, tais como mão-de-obra barata e abundância de recursos naturais, produzindo substanciais alterações nas formas de organização da produção e dos mercados.

Coerente com as premissas acima referidas, a recente história económica nacional atestou uma ruptura de modelo de desenvolvimento. A tónica da substituição de importações pela produção doméstica, induzida pelo fechamento da economia e pela intromissão manipuladora e protecionista do Estado, a partir dos anos 90 sofreu uma reorientação profunda, com substancial alteração do papel desempenhado pelo Estado no processo de desenvolvimento, deixando de ser o seu principal protagonista para avocar a função de agente formulador de diretrizes e regulador da atividade económica.

Segundo António Kandir (Doutor e Mestre em economia pela UNICAMP, ex-Secretário Especial de Política Económica - 1990/1991 -, Ministro do Planejamento e Orçamento do Governo Fernando Henrique Cardoso - 1996/1998. Texto sobre "Modernização, estabilização, governabili-dade e reformas", inserido no livro O Caminho do Desenvolvimento - Do Brasil Hiperinflacionário ao Brasil Competitivo e Solidário, Atlas, 1998, pp. 18-26) as novas diretrizes passaram a ser:

"1. A promoção da abertura da economia, objetivando reduzir os custos de modernização da estrutura produtiva e criar um ambiente concorrencial que impelisse as empresas brasileiras, acomodadas ao alto grau de protecionismo então vigente, a buscar ganhos de produtividade e qualidade de seus produtos; 2. A retirada do Estado do setor produtivo, mediante um programa de privatizações de suas empresas, com o ob-jetivo de estimular o investimento privado, aumentar a eficiência do sistema produtivo

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e promover o ajuste patrimonial necessário à solução estrutural dò problema fiscal; 3. A desregulamentação da economia, para suprimir monopólios legalmente constituídos e eliminar práticas e controles impeditivos da livre concorrência. Neste item, asr sumia destaque a desregulamentação dos monopólios estatais do setor de infra-estru-tura, que constituía obstáculo central à retomada do desenvolvimento; 4. A substituição de práticas a mecanismos de contro-le de preços e perpetuação de estruturas de domínio abusivo, de mercado por instrumentos e legislação necessários a uma política ativa de defesa da concorrência; 5. A substituição de controles administrativos de importações por instrumentos e legislação adequada de proteção contra práticas de comércio externo lesivas a empresas brasileiras; 6. A substituição de políticas setoriais calcadas em subsídios incondicionados por políticas horizontais de apoio à inova-çãó tecnológica e à busca de ganhos de produtividade e qualidade; 7. A reconstrução do padrão de financiamento a longo prazo da economia, mediante o fortalecimento do mercado de capitais; 8. A construção de um espaço económico ampliado, no âmbito regional, que permitisse aumentar o potencial de atração do Brasil sobre pedaços da cadeia produtiva de setores globalizados".

Ficam, então, definidas as diretrizes básicas:, o Estado permite e busca estimular a livre iniciativa. A economia do país é de mercado, restando ao Governo o papel de regulador, ou seja: não intervém direta-mente nos meios de produção e troca, mas tão-somente fornece as regras diante das quais se desenvolverão os agentes económicos na persecução de seus objetivos. É isto o que sé deduz do conceito jurídico-econômico da expressão "livre iniciativa".

II - A economia de mercado

Constatada a adoçãó política, respaldada em princípio constitucional, do regime de livre iniciativa nas relações rnerca-tòriais, passamos a definir as implicações deste conceito.

Juarez Alexandre. Báldini Razzieri, Economista, Professor de Economia da USP, Doutor e Mestre nesta matéria, em seu artigo "Introdução à Economia", descreve da seguinte forma o sistema de preços numa economia de mercado: "Para se ter-uma ideia mais clara do funcionamento do sistema de preços a apresentação começará com a descrição de uma economia de livre iniciativa sem a intervenção do Governo. Nesta circunstância o estado apenas participa da vida económica com àções regula-iórias, para os casos em que os conflitos privados não conseguem soluções através do mercado: O papel do Governo é marginal, pouco expressivo. Numa economia privada de livre iniciativa, nenhunragerité económico (indivíduo ou empresa) se preocupa em desempenhar o papel de gerenciar o borri funcionamento do sistema de preços. Preocupam-se em resolver isoladamente seus próprios negócios. Procuram apenas sobreviver na concorrência imposta pelos mercados, tanto na venda e compra de produtos finais como na dos fatores de produção. Esse jogo económico é todo baseado nos sinais dados pelos preços formados nos diversos mercados, como um sistema de semáforos para controlar o trânsito. Todos correm riscos, porém riscos previstos. O futuro é incerto, mas as prospecções se apoiam nas probabilidades de ocorrência, daí ò risco estimado. O lucro pode ser o prémio pelo, risco assumido" (Manual de Economia, Saraiva, orgs. Diva Benevides Pinho e Marco António S. de Vasconcellos, 1997, pp. 19-20).

III - Distinções entre conceitos de "valor" e "preço"

Preço é o valor pecuniário de um ob-jeto, quantia que alguém se dispõe a oferecer por algo, que as partes, diante de várias circunstâncias, (oportunidade, necessidade e conveniência), arbitram como "justo"; valor pode «ter vários critérios: de estimação (cunho pessoal, afetivo); de face (nominal) , histórico (cultural, social)\patrimo-nial (critério contábil); de uso (utilidade);

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