O valor residual garantido em contratos de arrendamento mercantil financeiro

AutorGuilherme de A. C. Abdalla
Páginas143-149

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Há anos são diversos os questio-namentos acerca da legalidade do Valor Residual Garantido (VRG) em contratos de arrendamento mercantil financeiro, que deixam o cidadão comum e o próprio mercado à mercê de sua sorte.

De um lado, o Legislativo mostra-se inerte à evidente necessidade de uma nova lei que tutele a matéria, e, de outro, o Judiciário divide-se em duas confrontantes correntes:

(a) a primeira delas, abrigada pela Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça, determina que a transferência do VRG quando da celebração do negócio ou, ainda, no decorrer de seu termo, descaracterizaria a natureza jurídica do leasing, porquanto retiraria a possibilidade de, ao final do contrato, ocorrer a sua renovação ou a devolução do bem, pois a arrendatária já teria quitado todo o montante investido pela arrendadora na contratação, inclusive o valor residual de compra, que só deveria ser pago ao final do contrato, se e quando do exercício da opção de compra. Conseqiientemente, o ajuste celebrado seria mera compra e venda a prestação, não obstante o nomen iuris empregado pelas partes;

(b) enquanto a segunda, acolhida pela Seção de Direito Público dessa mesma Corte, defende que a transferência do VRG é proveniente da autonomia da vontade dos contratantes, corolário do Direito Privado, e que essa transferência, até mesmo porque já regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional, através do Banco Central do Brasii, não poderia ser interpretada como o forçado exercício da opção de compra, ainda que somente sob a ótica financeira.

A pouco c pouco, resultou dessa discórdia a edição da Súmula 263, em sessão de 8 de maio de 2002, segundo a qual a cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contraio de "leasing", transformando-o em compra e venda a prestação. Mister enfatizarmos que, muito embora o sistema legal brasileiro seja considerado codificado, em contraste ao Common Lawt tantos mais, a jurisprudência no País é igualmente considerada fonte do Direito e, destarte, os comandos do dever jersumular projetam-se diretamente nas resoluções empresariais diárias do ser.

Nos moldes da respeitável Súmula 263, tanto as arrendadoras como as arrendatárias, que, presume-se iuris tantum,

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acordaram de livre vontade os termos e as condições avençadas, não mais se favoreceriam dos traços inerentes ao ieasing e, até mesmo, de seus benefícios fiscais, con-tábeis, civis e processuais civis, caso houvessem pactuado a transferência antecipada do VRG. O fator risco arbitrado pelos particulares, como se vê, foi revisto pelo Judiciário em desfavor das arrendadoras, majorando-se, ato contínuo, os juros remu-neratórios cobrados pelas mesmas.

Face à persistência do mercado, entretanto, a Súmula 263 foi cancelada após o transcurso de praticamente um ano, muito embora diversos Ministros da Scção de Direito Privado tenham mantido sua posição. Assim, diante da crescente soma de conflitos de interesses levados ao Judiciário, bem como das divergentes e respeitosas opiniões sobre o tema, vimos por bem contribuir com as seguintes considerações, clamando a atenção do Legislativo para suprimir positivamente essa pendenga.

I - Introdução

O arrendamento mercantil (Ieasing) foi introduzido na legislação brasileira pela Lei 6.099, de 12.9.1974, conforme alterada pela Lei 7.132, de 26.10.1983, lei essa que dispôs unicamente sobre o tratamento tributário1 de tais operações.

Posteriormente, e sob expressa permissão da citada lei,2 o Banco Cenlral do Brasil emitiu, em 28.8.1996, a Resolução 2.309, objeto de sucessivas alterações, disciplinando e consolidando as normas relativas às operações de arrendamento mercantil domésticas.

Nos termos do art. Ia da Lei 6.099/ 1974, considera-se arrendamento mercantil o negócio jurídico realizado entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendadora, e pessoa física ou jurídica, na qualidade de arrendatária, e que lenha por objeto o arrendamento de bens adquiridos pela arrendadora, segundo especificações da arrendatária e para uso próprio desta.

Diante das diversas características que compõem o negócioíwi? examine, não convergem os especialistas da matéria quanto à sua natureza. De um lado, defende-se que o arrendamento mercantil é um financiamento, enquanto, de outro, defende-se ser uma espécie de locação. Há terceiros, ainda, utilizando-se dos diversos traços inerentes ao ieasing para situá-lo no ordenamento jurídico, a saber, promessa de venda, mútuo ou mesmo relação de mandato.

Não sendo foco deste estudo o mérito dessa discussão, que, aliás, já é muito bem debatida pela nossa doutrina, necessário mencionarmos, somente, que não julgamos conveniente a caracterização da natureza do Ieasing pelo seu elemento factual predominante3 como muitos pretendem. Não foi esse o escopo do legislador, não é esse o fator predominante na Lei 6.099/1974, nem tampouco no sistema normativo.

Porque procurar tipos contratuais para definir um negócio jurídico próprio? O contrato de arrendamento mercantil, em nosso entendimento, não é financiamento nem espécie de locação. Há realmente relações obiigacionais no ieasing que se equiparam a outras já consagradas cm nosso ordenamento. Porém, tal assertiva não é suficiente para descaracterizar um contrato que existe por si só, um negócio jurídico que, ape-

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sar de não re fictício no Código Civil vigente,4 gera específicos direitos e obrigações entre as partes contratantes.

O eminente Ministro Humberto Gomes de Banos, em voto proferido em embargos de divergência em recurso especial 341-0, de 8.11.1994, em que figurava como Relator, comentou:

O leasing é resultado do cruzamento intrafamiliardedois institutos: locação e financiamento. Em sua composição entram, ainda, traços marcantes de dois outros contratos típicos: locação de serviços (evidentes, quando uma das partes se compromete a adquirir de terceiros, bens que serão utilizados pela outra) e compra e venda (presentes na opção que o tomador do leasing faz, no sentido de adquirir, em definitivo, a coisa objeto da locação).

Esta entidade mestiça terminou por ganhar identidade, diferenciando-se, por inteiro, daquelas que lhe deram origem. Tornou-se um contrato típico, inconfundível com qualquer outro.

No Brasil, atribui-se-lhe o...

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