Usufruto e superfície no direito empresarial

AutorGustavo Kloh Muller Neves
Páginas87-98

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Usufruto: configuração tradicional e crítica

O aproveitamento das utilidades de uma coisa por quem não é dono pode ser exercido por efeito de relação contratual, como no arrendamento e no comodato, em que o titular exerce o seu direito em nome do proprietário ou pode ser de direito próprio de ser exercido em nome do titular não-proprietário.1 Este direito que se exerce em nome próprio sobre coisa alheia, e que resulta na faculdade de usá-la e de gozá-la, recebe o nome de usufruto.

No direito justinianeu, o usufruto era considerado uma servidão pessoal, ou seja, uma forma de aproveitamento das utilidades de coisa alheia, independente da relação entre prédios.2 Desta distinção inicial, deriva uma característica essencial do usufruto, ue é o seu caráter pessoal. Cumpre ressaltar que, diferentemente do Código Civil de 1916 (art. 713), o Código Civil de 2002 prescindiu de uma conceituação legal do usufruto. A lei anterior dispunha que "constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades de frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade".

A principal característica do usufruto consiste no fato de ele ser sempre temporário. A razão da necessidade da fixação de prazo para esse direito real reside no fato de que faculdades elementares que ele encerra - o uso da coisa e a percepção dos frutos - são quase tão extensos quanto os do titular da coisa.3 Considerando-se que o jus in re aliena no qual se constitui o usufruto não deve servir de meio para a perda da propriedade, o que ocorreria na prática se este durasse para sempre (daí o fim da previsão legal da enfiteuse), o art. 1.410 do Código Civil prevê a duração temporária do usufruto.

Além destas características, verifica-se que usufruto é direito limitado e não exclusivo.4 Real e limitado porque abrange apenas os frutos e as utilidades de um determinado bem ou património, nos limites do art. 1.394 do Código Civil E ele não é

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exclusivo porque a exclusividade é um atributo específico da propriedade. Melhor: o usufruto é o direito referido a uma coisa que implica sempre a existência de um outro direito real sobre a mesma coisa, o qual se usufrui.

Como afirma Darcy Bessone,5 historicamente o usufruto tem função alimentar. Quase sempre é instituído para proporcionar meios de subsistência ao usufrutuário, muito embora a gratuidade não seja da sua essência. Todavia, alguns autores, como Orlando Gomes6 e o próprio Darcy Bessone7 são especialmente radicais ao analisar tal caráter do direito, negando mesmo qualquer utilidade maior do usufruto na contem-poraneidade.

Pòr outro lado, alguns autores, como Manuel Inácio Carvalho de Mendonça8 e Marco Aurélio Viana9 entendem que é perfeitamente admissível a figura do usufruto instituído a título oneroso. Não lhes parece em nada estranho o instituto, bem como não parece a nós, por algumas razões que passamos a expender.

Em primeiro lugar, se o Código Civil admite a cessão onerosa do usufruto,10 no qual terceiro é legitimado no exercício dos direitos dele decorrentes, quem dirá a constituição onerosa do usufruto. Em segundo lugar, comparando-se a redação dos arts. 1.412 e 1.414 do Código Civil, que tratam dos direitos reais de uso e de habitação, verificamos que os referidos têm, efetiva-mente, um caráter intuitu familiae. O art. 1.412 exige, para o adequado exercício do direito de uso, que este seja feito em atendimento das necessidades do "usuário e da sua família". No art. 1.414, o titular do direito real de habitação pode simplesmente residir em uma casa "com sua família".

Nada semelhante é encontrado no capítulo de usufruto no Código Civil.

Amoldo Wald11 lembra que a admissão do usufruto em favor de pessoa jurídica (Código Civil, art. 1.410, III) também é excelente indicativo de que está visão antiga do instituto do usufruto não pode mais prevalecer, em especial diante de um Código Civil que expurgou a figura do usufruto vidual.12 Desta feita, uma série de utilizações empresariais do usufruto podem ser implementadas, sendo o citado direito real mais uma técnica a ser empregada na implementação das mais diversas ativida-des empresariais, como veremos a seguir.

Usufruto de empresa e de estabelecimento

Inicialmente, cumpre salientar que a figura descrita nos arts. 716 e ss. do Código de Processo Civil não corresponde nem à penhora de dividendos nem à penhora de cota.13 O usufruto de empresa14 é modalidade de pagamento,15 e não de execução

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forçada, sendo essencial que haja requerimento do credor para a sua implementação, dispensando-se todavia a anuência do executado,16 resultando esta interpretação de um cotejo entre os arts. 726 e 722, que, no usufruto de imóvel, a exige especificamente, enquanto no art. 726 não há menção alguma. De legeferenda, imagino que a mesma anuência deveria estar prevista, mas não . é possível no nosso entender a interpretação extensiva; o que se pode, sem sombra de dúvida, é cogitar da possível inconveniência da medida, donde se deflui que o deferimento do usufruto de empresa não é direito subjetivo, e pode ser indeferido pelo magistrado, em especial diante da gravidade das consequências que poderão advir da aplicação do art. 727 do Código de Processo Civil, não se podendo olvidar dos princípios que regem a execução processual, especialmente os da execução menos gravosa e o da utilidade.17

De acordo com art. 727, o magistrado nomeará o administrador do usufruto, entregando-lhe a empresa. Da consulta efe-tuada ha doutrina processual, mesmo diante das palavras do Mestre José Carlos Barbosa Moreira, resta claro que a preocupação incessante com o controle da empresa passa ao largo do pensamento processua-lista, mormente diante do possível conflito de interesses entre administrador e titular da empresa, em muitos casos, credor é devedor. Pensamos que, diante de qualquer" possibilidade de conflito, o usufruto de empresa perde a utilidade, que é pressuposto de qualquer técnica executória; assim, somente em situações nas quais se evidencie o interesse do credor em se pagar pelo usufruto (lembramos que é necessário o requerimento, e os termos do mesmo serão parâmetro para tanto), e não haja nenhuma pos-sibilidade de o administrador lucrar mais com a derrocada da empresa, o que violaria o princípio da menor gravosidade para o devedor, será possível a utilização do usufruto de empresa.

Outra questão que acompanha a primeira é a de como interpretar e aplicar o art. 50 da Lei de Recuperação Judicial,18 que considera o usufruto de empresa como meio de recuperação judicial, que para Waldo Fazzio Júnior representa expediente moderno de conservação da atividade da empresa.19 Todavia, falar é fácil, e a administração dos interesses contrapostos20 pode levar a uma série de impasses, particularmente se o usufruto abranger o do estabelecimento.21 A mesma lógica deve sempre reger a declaração desse meio como hábil à recuperação, que é a extraída dos princípios contidos no art. 47 da Lei de Recuperação: "á recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalha: dores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade económica". Havendo qualquer dúvida se o usufruto de empresa poderá inviabilizar a consecução dessas metas, deve ser.ele evitado como meio de recuperação. De qualquer modo, pode ser lembrado o parâmetro que anteriormente citei, e que vale também para as hipóteses de administração compartilhada (step in): se for evidente que

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o soçobramento do empreendimento é benéfico aos credores, não se pode entregar a eles a administração. Nada justificaria isso, sendo mais recomendável, verbi gratia, ã venda em bloco ou outro expediente previsto no art. 50 do referido diploma.

É ainda possível que o usufruto de empresa e estabelecimento seja contratualmente instituído, na forma dos arts. 1.143 e 1.144 do Código Civil. Neste caso, é de se ter especial atenção para relevância do inventário, previsto no art. 1.400 do Código Civil,22 como meio de garantia da inco-lumidade dos bens entregues em usufruto, que deverão ser listados e restituídos em sua inteireza; se consumíveis, serão substituídos por bens de igual valor.

Usufruto de cotas e ações

Também é perfeitamente admissível, no Direito pátrio, o usufruto de cotas ou de ações, pois é típico do usufruto que possa recair sobre os mais variados tipos de bens, desde os mais determinados até as univer-salidádes.23 É extremamente comum a sua utilização nestes termos em acordos de separação, bem como a sua instituição por via testamentária, como forma de garantia de renda ao herdeiro, ou mesmo por ato inter vivos.24

A primeira dúvida a se avizinhar sobre o usufruto de cotas é se há necessidade de autorização prévia do contrato social para a sua realização. Quanto às sociedades anónimas, consta a previsão expressa no art. 40 da Lei das S/A. Amoldo Wald,25 ainda sob a égide do Código anterior, defendeu a aplicação subsidiária das Lei das S/A às limitadas. Atualmente, não é mais tão simples a questão, pois o art. 1.053, parágrafo único, do Código Civil, estabelece que o contrato social poderá prever a regência supletiva pela Lei das S/A; a contrario, se nada prever, não se pode aplicar o art. 40 da Lei das S/A.

Entretanto, não concluímos ab initio pela impossibilidade de constituição de usufruto sobre a cota no...

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