Untouchable Structures: Racism and Dictatorship in Rio de Janeiro/Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de Janeiro.

Autorde Oliveira Pires, Thula Rafaela

Introducao

Desde a invasao europeia e consolidacao do projeto colonial em terras brasileiras, a raca determina a hierarquia a partir da qual se organizam relacoes intersubjetivas e, principalmente, institucionais. No entanto, apesar de ser um aspecto absolutamente estruturante e reinventado a cada periodo, sao raras as analises que se dedicam a pautar essa categoria em imbricacao com outras como genero, classe e sexualidade na leitura de processos politicos relevantes da vida nacional.

O objetivo desse trabalho e oferecer a partir de algumas formas de resistencia negra contra a Ditadura, organizadas nas decadas de 1960, 1970 e 1980, exemplos de processos de violencia e enfrentamento que sao costumeiramente silenciados nos trabalhos relacionados ao periodo, mas que podem informar muito sobre o que se consolidou como violencia de Estado naquele momento, em periodos anteriores e naqueles que se sucederam.

O primeiro aspecto que precisa ser destacado tem relacao com as negativas em racializar as experiencias das Comissoes da Verdade que se instituiram no Brasil. No ambito da Comissao Nacional da Verdade, a questao racial nao e apresentada de maneira transversal, tal como se evidenciou nas violencias perpetradas, muito menos como tratamento apartado.

Em algumas experiencias estaduais foi possivel, ainda que tardiamente e nao sem disputa, oferecer algumas referencias que marcassem a relacao entre racismo e ditadura empresarial-militar, como no Rio de Janeiro e Sao Paulo. Em todos os casos, o silenciamento ou abertura lateralizada enfrentaram o desafio de responder a perguntas como: "o que houve de especifico na violencia perpetrada contra negros no periodo da ditadura militar?", "a violencia sofrida por negros no periodo nao foram as mesmas a que estavam secularmente submetidos?", "Como caracterizar uma violencia da ditadura estritamente pautada no racismo"?

Tais perguntas so fazem sentido diante das seguintes premissas: 1) uma visao simplista sobre o racismo, entendido puramente na sua dimensao intersubjetiva e dolosa; 2) a ideia de que so e possivel entender o racismo a partir de seus efeitos sobre corpos negros; 3) na incapacidade de atribuir humanidade a corpos que habitam e representam a zona do nao ser.

A primeira premissa reflete a inabilidade de perceber o racismo em sua dimensao estrutural, responsavel por conformar brancos, nao brancos e instituicoes racistas. Imaginar que o racismo da ditadura estaria refletido apenas em agressoes verbais e fisicas caracterizadas por motivacao explicitamente racial chega a beirar o absurdo. O solipsismo branco (OYEWUMI, 2000) e tao contundente que prejudica a percepcao da hierarquizacao de humanidade baseada na raca como um componente estruturante das violencias perpetradas pelos agentes de Estado, sobretudo em periodos autoritarios.

Com a segunda premissa, decorrente da primeira, percebe-se a dificuldade de assumir a branquitude como racialidade. O fato da branquitude apresentar-se como racialidade nao nomeada tao somente evidencia que se impoe como representativa do universal, do parametro a partir do qual sao organizadas as relacoes e as instituicoes (a exemplo do que ocorre com a masculinidade e a cis/heteronormatividade). A percepcao do modelo de supremacia branca pode ser evidenciada pelos efeitos desproporcionais e violentos sobre corpos negros e indigenas, mas deve ser igualmente percebida atraves do sistema de privilegios e vantagens injustificaveis que beneficiam corpos brancos.

O terceiro aspecto destacado tem relacao com a desumanizacao tao profunda de corpos nao brancos que o reconhecimento de seus processos de organizacao e agencia por democracia e liberdade, ainda que seculares e reafirmados em momentos de acirramento da violencia e do arbitrio, nao sao entendidos nesses termos. Partindo das contribuicoes de Fanon (2008), assume-se aqui a incomensurabilidade entre a zona do ser e a zona do nao ser. A primeira esfera e tomada como regua de humanidade, a partir da qual serao identificadas as ideias de licito/ilicito, moral/imoral, homemmulher/macho-femea, civilidade/primitivo, racional/bestial, humano/nao humano. A condicao de aplicacao da legalidade na zona do ser tem sido sustentada na violencia, como regra, na zona do nao ser (GROSFOGUEL, 2016).

A partir de pesquisa feita para a Comissao Estadual da Verdade do Rio de Janeiro em 2015, busca-se sublinhar como sujeitos politicos corpos nao encarados nesses termos. Racializar a producao de memoria sobre o periodo se inscreve nesse trabalho para evitar que se reproduza o silenciamento das contribuicoes negras na luta por democracia no periodo ou que se reproduza um olhar sobre racismo e ditadura a partir do problema do negro (RAMOS, 1995).

Nas palavras de Edson Cardoso (2017a):

Em condicoes politicas "normais", disse Beatriz Sarlo, o passado sempre chega ao presente. Nossas condicoes de vida no Brasil nao sao normais, certo? O Estado, o governo, os meios de comunicacao, escolas e partidos, e um numero infinito de instituicoes dedicam-se a apagar ou distorcer os fatos reais e concretos nos quais se envolveu e se envolve a populacao negra. Tudo bem? Entao, compreenda de uma vez por todas que, sem sua ativa participacao, o passado nao chegara ate nos. Nesse sentido, pretende-se mencionar algumas praticas que foram empreendidas pelos orgaos de (In)Seguranca e que refletem um Racismo Institucional congenito. O fato do regime empresarial-militar ter adotado o mito da democracia racial como um dos seus mecanismos ideologicos de controle (HANCHARD, 2001), consubstanciado na Lei de Seguranca Nacional, mas nao apenas, faz com que o relato responsavel do periodo passe necessariamente por essa lente, sob pena de serem reproduzidas as falaciosas memorias incolores que reforcam os lugares de subalternidade e encobrem as agencias de negros e negras que determinam seus percursos politicos em primeira pessoa, com sangue, suor e gritos (de ordem e de dor).

1 Mito da Democracia Racial como base ideologica da Ditadura

No periodo que antecede a eclosao do golpe militar, uma serie de pesquisas sobre relacoes raciais sao empreendidas no Brasil, no que se conhece como PROJETO UNESCO. Inicialmente, tomando como premissa a ideia do Brasil como paraiso racial, a intencao dos financiadores do Projeto era, no pos guerra, oferecer ao mundo a receita de harmonia entre racas que por aqui se acreditava existir. A investigacao, ao contrario, foi a responsavel pelo questionamento academico do mito da democracia racial e ofereceu diagnosticos importantes sobre relacoes raciais na decada de 1950.

No ambito do projeto, Costa Pinto foi o responsavel pela investigacao das relacoes raciais no Rio de Janeiro. Uma das principais contribuicoes do autor na obra O Negro no Rio de Janeiro (1953) foi a de promover um estudo sociologico do negro a partir das relacoes raciais e nao sobre os produtos dessas relacoes (assimilacao, aculturacao, etc). A partir dos dados do Censo Demografico de 1940, Costa Pinto destacou a composicao da populacao do Distrito Federal por cor/raca, sexo, atividades economicas, ocupacao, escolaridade, lugar de moradia, entre outros.

Costa Pinto confrontou o mito da democracia racial, defendendo a hipotese de que no periodo haveria o crescimento das tensoes raciais, na medida em que a mudanca de posicao social do negro na sociedade determinou o aparecimento/recrudescimento dos atos de preconceito, que surgiram para lembra-los dos lugares sociais a eles tradicionalmente reservados. A resistencia aos atos de preconceito teriam modelos distintos dependendo do estrato social que o negro ocupava. Segundo o autor (PINTO, 1953), o negro de classe media tendia a tomar consciencia de sua opressao pelo aspecto racial, em razao da resistencia a sua mobilidade pelos estratos brancos das classes superiores; enquanto que o negro-massa enfrentava o preconceito como massa, a consciencia de sua opressao se dava na perspectiva de classe.

A forma como operam as violencias na zona do ser sao distintas do que ocorre na zona do nao ser. Assim como tendem a ser diferentes as formas de resistencia a elas. Quando se diz que a dimensao racial se destaca na classe media e mais abastada, isso nao implica no apagamento da ideia de classe para compreensao dos codigos atraves dos quais o racismo, sexismo e a cis/heteronormatividade irao operar. No mesmo sentido, a dimensao de classe que primeiro se apresenta na atuacao do negro- massa nao torna subsidiaria a atuacao da raca, genero e sexualidade no seu processo de tomada de consciencia, porque a violencia sofrida esta ancorada na atuacao imbricada entre elas.

Essa retomada do perfil do negro na sociedade do Rio de Janeiro na decada de 1950 e fundamental para que sejam compreendidos os diversos modelos de violencia sofridos a partir de 1964. Dependendo do estrato social a que pertence o negro, distinta tende a ser a sua resistencia, assim como os mecanismos de repressao de Estado que serao empreendidos contra ele.

Representativo do discurso oficial do regime sobre a questao racial e a Informacao 437/74 da Divisao de Seguranca e Informacoes do Ministerio da Justica (1) para ser difundido entre SNI/AC--RECISA--CENIMAR--CIE.:

Existe no BRASIL, ja ha alguns anos, embora com certa raridade, a intencao velada do movimento subversivo em suscitar o problema da discriminacao racial, com o apoio dos orgaos de comunicacao social. [...] Pela analise realizada pelos Orgaos de Informacoes, em 1971, conclui-se que individuos inescrupulosos e avidos, para aumentarem as vendas de seus jornais ou revistas, e outros, principalmente por estarem ligados ou viverem na subversao ou terrorismo, estavam constantemente, difundindo boatos e noticias que exploravam o assunto, [...] Nesses anos, a repercussao do assunto foi consideravel, chegando a influir na moda com o aparecimento de um novo tipo de cabeleira, gestos tipicos e disticos alusivos em pecas de roupas, visando a dar uma conotacao de presenca e fortalecimento da...

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