Unproductive labor and its configurations in the twentieth century/O trabalho improdutivo e suas configuracoes no seculo XX.

AutorBizerra, Fernando de Araujo

Introducao

Desde a segunda metade do seculo XX, numa delimitacao historica mais precisa, assiste-se a uma verdadeira epidemia de teorias que promulgam o fim da centralidade do trabalho no mundo dos homens e, no aspecto sociopolitico, o "adeus ao proletariado". Os argumentos, por vezes, sao os mais variados. Sustenta-se--como e o caso de Schaff, Lojkine, Bell, Toffler, embora com diferencas--a afirmacao de que o incremento pujante das tecnologias computadorizadas na producao, como a automacao e a informatizacao, ao ampliar as possibilidades de difusao do conhecimento, constituem o anuncio e a potencialidade de uma nova civilizacao, nitidamente pos-mercantil, mais justa e igualitaria. Sendo, assim, totalmente diferente da industrial: a "sociedade de informacao".

Por meio dela, a humanidade seria levada, aos poucos, a um novo patamar organizacional situado para alem do capitalismo, pois

A sociedade de informacao, segundo seus teoricos, gera mudancas no nivel mais fundamental da sociedade. Inicia um novo modo de producao. Muda a propria fonte da criacao de riqueza e os fatores determinantes da producao. O trabalho e o capital, as variaveis basicas da sociedade industrial, sao substituidas pela informacao e pelo conhecimento. A teoria do valor do trabalho, da maneira formulada por uma sucessao de pensadores classicos, de Locke e Smith a Ricardo e Marx, e obrigada a ceder lugar a uma 'teoria do valor do conhecimento, e nao do trabalho, e a origem do valor'. (KUMAR, 2006, p. 24).

Alega-se, ainda, que a producao flexivel tipica das fabricas enxutas toyotistas e a expansao do setor de servicos provocaram mudancas que, ao serem positivas para quem labuta diariamente, deixaram para tras o trabalho tedioso, ingente e monotono que implica a desqualificacao dos operarios, abrindo espaco para a requalificacao do trabalho, para a fusao entre o trabalho manual e o intelectual e, por que nao, o produtivo e o improdutivo. Os antagonismos que balizam a divisao do trabalho tipicamente capitalista estariam, por definitivo, sendo superados.

Em se tratando das categorias trabalho produtivo e improdutivo, desde os fisiocratas, passando por Smith, Marx, ate autores contemporaneos como Mandel, Rubin, Napoleoni e outros, as polemicas em torno delas fo ram se construindo. Abre-se nitidamente uma linha divisoria de analises saturadas de dissonancias. Como bem constata Dal Rosso (2014), nao existe, na literatura produzida, uma leitura inteiramente consensual; ao contrario, ela e, segundo o autor, "de natureza inteiramente diversa". No entanto, embora reconhecamos esse fato de grande importancia, nao e sobre ele que nos debrucaremos aqui.

Este artigo nao se volta para o debate teorico instaurado nas Ciencias Sociais sobre o trabalho produtivo e improdutivo. Versa, pois, sobre o trabalho improdutivo na dinamica autoexpansiva do capital no seculo XX. Pretende-se demonstrar que essa forma de trabalho assume configuracoes distintas e funcoes peculiares correspondentes a cada conjuntura, comprovando, assim, que o aumento de atividades improdutivas dentro e fora do espaco fabril responde as determinacoes e exigencias mais imperativas do modo de producao capitalista.

Parte-se da premissa de que o trabalho abstrato, tipico do capitalismo, materializa-se, para atender a diferentes necessidades, em trabalho produtivo e improdutivo. Ambos sao funcionais, necessarios e imprescindiveis a reproducao ampliada do capital, mas distintos ontologicamente: a esfera produtiva produz mais-valia e a esfera improdutiva nao a produz. Se se considerar que a finalidade ultima da producao capitalista e, em todo caso, a obtencao da mais-valia produzida pela exploracao do trabalhador, logo, aparentemente (mas, so aparentemente), seria um "paradoxo" a existencia de um trabalho que, por estar submetido as exigencias do sistema, nao a produza. Pautando-se na analise historica e critica da realidade, o intuito e justamente o de contribuir para o desvelamento desse suposto "paradoxo" a partir da demonstracao da coexistencia necessaria entre trabalho produtivo e improdutivo.

Trabalho produtivo e trabalho improdutivo: breves diferencas ontologicas

Marx (1983), em O capital, evidencia que e a partir do trabalho que se produz o novo que impulsiona a humanidade a patamares sempre mais elevados de sociabilidade. Mas o que o especifica? Para responder corretamente a tal indagacao, vale a pena recorrer ao Capitulo V da referida obra, onde se le:

[...] o trabalho e um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua propria acao, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a materia natural como uma forca natural. Ele poe em movimento as forcas naturais pertencentes a sua corporalidade, bracos e pernas, cabeca e mao, a fim de apropriar-se da materia natural numa forma util para sua propria vida. (MARX, 1983, p. 297).

O trabalho e o processo de transformacao da natureza mediada pela acao consciente do homem sobre a mesma. O homem--pertencente a uma organizacao social especificamente constituida--transforma a materialidade natural, externa a ele, em algo necessario a sua subsistencia. Exercendo o controle sobre a natureza, o homem sujeita as forcas fisicas e mentais do seu corpo para produzir, "numa forma util" e sempre de maneira nova, coisas que atendam as necessidades relacionadas a sua autopreservacao: comer, beber, vestir-se, habitar.

A natureza constitui a base insuprimivel da vida em sociedade, pois nao se pode, em hipotese alguma, haver a reproducao social sem a transformacao daquela nos meios de producao e subsistencia imprescindiveis a cada sociabilidade. Ou, dito de outra forma, a sociedade, quer na sua forma mais primitiva, quer na sua expressao mais complexa, e impossivel sem a natureza. Essa impossibilidade de existencia da sociedade sem a natureza resulta na dependencia da primeira em relacao a segunda. Nao ha vida social sem a natureza.

Todavia, o inverso nao e verdadeiro: a natureza existe independentemente da sociedade, e algo a ela anterior. Vale ressaltar que isso deve ser corretamente compreendido para nao se cair em deformacoes que entendem ser o funcionamento da sociedade sujeito as mesmas leis que operam na objetividade natural. Quando ocorre essa transposicao simplista, desconsidera-se que a peculiaridade da vida em sociedade consiste no fato de que ela e edificada pela acao consciente dos homens ao encontrarem cada vez menos prontas as condicoes para sua reproducao, produzindoas, atraves do trabalho, sob pena de fenecerem.

Cabe sublinhar, ja que por vezes isso tende a ser negligenciado, que tal constatacao e valida tambem para a sociedade capitalista, pois sem o intercambio organico com a natureza o capital, enquanto riqueza produzida pela exploracao do trabalho, nao pode existir. O que essa sociedade traz de novo, e que lhe e peculiar, e a conversao em trabalho abstrato de toda a transformacao dos elementos naturais que se volta para a producao de objetos.

Na producao capitalista, o principal objetivo nao e apenas producao de mercadoria. O capitalista, ao contratar os servicos do trabalhador, tem em vista que o mesmo produza valores de uso, produtos que sirvam para satisfazer as diversas necessidades produzidas pelos sujeitos. Mas, na verdade, o que interessa prioritaria e imediatamente ao capitalista nao e o valor de uso e sim o que este valor, ao ser levado ao mercado na forma de uma mercadoria que satisfaca necessidades do "estomago ou da fantasia", representa como valor de troca.

O valor de troca se sobrepoe, no contexto da producao capitalista, ao valor de uso. Este ultimo existe enquanto "substrato material" daquele. Marx (1983, p. 155) informa que

O produto--a propriedade do capitalista--e um valor de uso, fio, botas etc. Mas, embora as botas, por exemplo, constituam de certo modo a base do progresso social e nosso capitalista seja um decidido progressista, nao fabrica as botas por causa delas mesmas. O valor de uso nao e, de modo algum, a coisa qu'on aime pour luimem (1). Produz-se aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portadores do valor de troca. Interessam ao capitalista duas coisas:

Primeiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado a venda, uma mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-las, os meios de producao e a forca de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir nao so um valor de uso, mas uma mercadoria, nao so valor de uso, mas valor e nao so valor, mas tambem mais-valia (MARX, 1983, p.155).

Para produzir mercadorias e delas extrair mais-valia, o capitalista precisa comprar forca de trabalho e explora-la. Um dos pressupostos para que o capital (e, juntamente, o trabalho abstrato) pudesse se generalizar foi a separacao entre os produtores e os meios de trabalho, e a consequente mercantilizacao da forca de trabalho.

Tal separacao se deu no contexto da "acumulacao primitiva do capital" ocorrida entre os seculos XV e XVI. Ela e entendido como "os revolucionamentos que servem de alavanca a classe capitalista em formacao; sobretudo, porem, todos os momentos em que grandes massas humanas sao arrancadas subita e violentamente de seus meios de subsistencia e lancadas no mercado de trabalho". (MARX, 1988, p. 253). Ocorre ai, sob o protetorado do Estado Absolutista, a expropriacao do campesinato das areas agricolas, que agora sao destinadas a criacao de ovelhas que fornecem a la para as manufaturas nascentes; a expansao das relacoes mercantis; o disciplinamento violento da massa de trabalhadores a serem enquadrados no sistema de trabalho assalariado que se instaurava; a formacao dos grandes monopolios comerciais; o deslocamento da rota comercial para o Atlantico, principalmente para a America; e a descoberta de novas fontes de riquezas antes inexploradas.

O...

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