Universidade publica e contrarrevolucao: da 'travessia de uma ponte' ao 'caminho da prosperidade'/Public university and counter-revolution: from 'crossing a bridge' to the 'path of prosperity.

AutorLima, Katia

Introducao

Este texto apresenta parte dos estudos realizados em grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pos-Graduacao em Servico Social e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Examina o significado politico, economico e social das acoes do Governo Federal (2003/2019) com vistas ao ajuste fiscal, bem como a implicacao destas acoes para a educacao superior em tempos de contrarrevolucao burguesa.

Em um primeiro momento, o artigo aborda as diferentes fases da contrarrevolucao no Brasil: da fase conduzida pelos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003/2016), caracterizada pela politica de conciliacao de classes, ao periodo pos-impeachment, nos Governos Michel Temer (2016/2018) e Jair Bolsonaro (2019/em curso), de aprofundamento dos ataques aos direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores. Tal abordagem critica esta ancorada na interlocucao com a obra do saudoso intelectual militante Florestan Fernandes. A recuperacao deste proficuo instrumental analitico nos auxilia a perceber as particularidades da contrarrevolucao em um pais marcado pelo carater ultraconservador da sua burguesia nativa, como indicava Fernandes (1975).

O item Educacao superior: da "travessia de uma ponte" ao "caminho da prosperidade" analisa o contexto de aprofundamento da regressao de direitos realizado pelo Partido do Movimento Democratico Brasileiro (PMDB) (2016/2018) e pelo Partido Social Liberal(PSL) (2019/em curso) a partir do exame de cinco documentos: (i) Uma ponte para o futuro, do Partido Movimento Democratico Brasileiro (PMDB, 2015); (ii) Emenda Constitucional n. 95/2016, (proposta de emenda a Constituicao, ou PEC dos Gastos Publicos 241, na Camara Federal, e 55, no Senado Federal (BRASIL, 2016); (iii) A travessia social - Uma ponte para o futuro (PMDB, 2016); (iv) Manifesto a nacao: Brasil para os brasileiros, divulgado pela Frente Parlamentar Evangelica (2018); e (v) O caminho da prosperidade- Proposta de plano de governo (Bolsonaro), do Partido Social Liberal (PSL, 2018).

A analise dos referidos documentos evidencia que esta em curso uma nova fase da contrarreforma do Estado e da educacao superior, operacionalizando a contrarrevolucao preventiva pela dura ofensiva a educacao publica em sua dupla face: o aprofundamento da sua mercantilizacao e a busca do silenciamento do conhecimento critico pela captura da subjetividade de professores e estudantes. Por fim, o texto problematiza as tarefas urgentes e necessarias de defesa da universidade publica e gratuita, como locus privilegiado da producao do conhecimento cientifico e tecnologico, em um contexto de ofensiva reacionaria na educacao publica.

Capitalismo dependente, ajuste fiscal permanente e contrarrevolucao

Florestan Fernandes (1968) analisando o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, inscreve-o como parte da expansao do mundo ocidental e do papel que a colonizacao portuguesa desempenhou nesta expansao pela revitalizacao do regime estamental, que articulou grande plantacao, trabalho escravo e expropriacao colonial. A emancipacao juridico-politica disfarcava os novos lacos da dependencia marcados pela transplantacao de gente, de tecnica e de instituicoes vindas da Europa, caracterizando o processo que Fernandes (1968) denominou como "condicao colonial permanente".

Identificando os requisitos estruturais e dinamicos das particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, Fernandes (1968, 1975) considera que a natureza da burguesia brasileira sera forjada na configuracao do padrao composito de hegemonia burguesa, que faz com que a burguesia associe-se, historicamente, ao imperialismo e aos setores mais arcaicos da economia brasileira, operando, simultaneamente, o padrao dual de expropriacao do excedente economico. Assim, a riqueza produzida coletivamente pelos trabalhadores no Brasil e repartida entre burguesia internacional e burguesia brasileira enquanto duas faces do mesmo projeto de dominacao.

A transicao entre extincao do sistema colonial e a implantacao do trabalho livre, vendido como mercadoria, ocorreu, desta forma, sob processos muito bem definidos. Fernandes (1968) considera que o mercado de trabalho nao funciona, no capitalismo dependente, segundo os requisitos de uma economia capitalista competitiva, a medida que nao preenche a funcao de incluir todos os vendedores reais ou potenciais da forca de trabalho. Isso porque a mercantilizacao do trabalho ocorre nos marcos da sobrevivencia das economias de subsistencia e das formas extracapitalistas dessa mercantilizacao, orientadas por uma mentalidade especulativa predatoria.

Este processo evidencia como os padroes de dominacao externa estao associados a submissao consentida da burguesia brasileira nos marcos do padrao composito de hegemonia e do padrao dual de expropriacao do excedente economico. Nao devemos, portanto, entender a burguesia brasileira como uma burguesia "fraca", mas que possui certo grau de autonomia relativa para negociar os termos da dependencia estabelecida com os paises imperialistas, pois esses necessitavam e necessitam, na atualidade, de parceiros fortes na periferia do capitalismo para consolidar o seu projeto hegemonico.

A composicao politica entre setores conservadores, que inclusive acomoda os interesses mais arcaicos de determinadas fracoes de classe, e a exclusao sistematica dos trabalhadores nao constituem fenomenos historicamente datados, mas sao caracteristicas inerentes a natureza das burguesias dos paises capitalistas dependentes. Assim, o padrao composito de hegemonia e o padrao dual de expropriacao do excedente economico sao tracos constitutivos, isto e, estruturantes da dominacao de classe, denotando o perfil ultraconservador da burguesia brasileira e suas acoes antissociais e antinacionais de exploracao crescente da forca de trabalho; de exportacao de parte do excedente economico para os centros imperialistas; de privilegiamento da lucratividade do capital e de intensificacao das desigualdades economicas, politicas e sociais.

Esta "modalidade duplamente rapinante do capitalismo" (FERNANDES, 1981, p. 40) forja uma mentalidade burguesa extremamente reacionaria, egoista e estreita, realizando uma superexploracao da forca de trabalho que gera setores da classe trabalhadora apartados do acesso as condicoes minimas de vida inerentes ao proprio capitalismo. Alem disso, "coexistem com a massa dos despossuidos, condenados a niveis de vida inferiores ao de subsistencia, ao desemprego sistematico, parcial ou ocasional, a pobreza ou a miseria, a marginalidade socio-economica, a exclusao cultural e politica etc." (FERNANDES, 1981, p. 37). A configuracao da luta de classes no capitalismo dependente se estabelece, assim, pelo uso da violencia como um traco estruturante, constitutivo da sua logica de funcionamento. Portanto, a burguesia brasileira nao esta violenta, ela e violenta, ou, nas palavras de Fernandes (1975, p. 41):

Sob um novo clima de temor panico, de compulsao repressiva e de abuso do poder politico institucionalizado, as classes sociais possuidoras e privilegiadas tentam reconstituir a grande facanha politica da oligarquia tradicional, aplicando a participacao social ampliada das massas no poder o modelo desmoralizado da democracia restrita. Violencia e sobre-expropriacao sao elementos estruturantes da natureza da burguesia brasileira. A expansao do capitalismo dependente realiza a renovacao, com novas aparencias, do proprio capitalismo dependente, reforcando a concentracao de renda, do prestigio social e do poder. Faz, assim, com que a fragil democracia restrita, sob qualquer ameaca minima a estabilidade da ordem burguesa, adquira a feicao de uma catastrofe eminente, provocando estados de extrema rigidez estrutural.

Neste quadro analitico, as crises sistematicas do capitalismo, que constituem uma contradicao insoluvel deste sistema, tornam a contrarrevolucao, concebida como um conjunto de acoes politicas e economicas realizadas pela burguesia para garantia da reproducao do projeto burgues de sociabilidade, um processo permanente, que ora se materializa em praticas ostensivamente repressivas e autoritarias, ora se metamorfoseia e se recicla atraves de projetos de democracia restrita de acordo com as configuracoes historicas e espaciais da luta de classes (FERNANDES, 1980).

Em um pais marcado por sua insercao capitalista dependente na economia mundial, pelo padrao composito de hegemonia e pelo padrao dual de expropriacao do excedente economico, a contrarrevolucao burguesa ganha contornos bastante definidos. Recuperando as analises de Florestan Fernandes (1975, p. 362), podemos identificar a contrarrevolucao no Brasil de duas formas: "a quente" e "a frio". A primeira expressa uma acao violenta, associada ao regime burgues-militar e ao Estado autocratico burgues. A segunda forma de identificacao esta articulada com a existencia de "fases seguras e construtivas da contrarrevolucao" (FERNANDES, 1975, p.347). As acoes contrarrevolucionarias "a frio" demonstram a capacidade da burguesia brasileira de alargamento da participacao politica dos trabalhadores, sem colocar em risco a essencia da exploracao/dominacao capitalista.

Para a realizacao das acoes contrarrevolucionarias "a frio", a burguesia brasileira adotou uma estrategia de contrarrevolucao preventiva, na qual tres aspectos foram fundamentais: (i) estabelecer um pacto de dominacao entre as fracoes da burguesia, em sua dupla face: brasileira e internacional; (ii) construir aliancas com a burocracia sindical e partidaria da classe...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT