Comércio internacional, direitos humanos e direito ao desenvolvimento: O acesso universal aos medicamentos anti-retrovirais no Brasil

AutorPedro Henrique Batista Barboso
CargoBacharel, tendo também estudado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e no Instituto de Ciências Políticas de Paris
Páginas240-275

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Introdução

O tratado TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) define, em seu artigo 27, o que seria objeto de patente da seguinte maneira:

Subject to the provisions of paragraphs 2 and 3, patents shall be available for any inventions, whether products or processes, in all fields of technology, provided that they are new, involve an inventive step and are capable of industrial application. Subject to paragraph 4 of Article 65, paragraph 8 of Article 70 and paragraph 3 of this Article, patents shall be available and patent rights enjoyable without discrimination as to the place of invention, the field of technology and whether products are imported or locally produced 1

A partir desse momento, todas as matérias que se enquadrassem na definição acima passaram a ser regidas por um regime jurídico específico que impõe limitações no livre manejo e disposição desses bens. Começa a ganhar forma legal no campo internacional o direito à propriedade intelectual, com suas características, prerrogativas e deveres.

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A assinatura do acordo TRIPS em 1994 em Marraqueche introduziu no cenário internacional um novo regime de proteção aos direitos da propriedade intelectual2. Por meio desse acordo, importantes transformações tomaram corpo. Primeiramente, as grandes potências mundiais tomaram um passo sem precedente rumo à homogeneização do regime de patentes no mundo, numa manobra cujos interesses eram de transpor ao nível global as normas de proteção já vigentes em seus âmbitos internos. Num segundo momento, a eficácia do tratado permitiu que as companhias mul-tinacionais, em grande parte sediadas nas nações mais ricas do globo e ar-duamente apoiadas por um grupo de países liderado pelo EUA, forçassem os países do hemisfério sul – desprovidos de um sistema de patentes – a modificarem suas legislações nacionais, na maioria das vezes sem levar em consideração pontos essenciais, tais como a heterogeneidade econômica vigente entre as regiões e os interesses das políticas públicas locais3.

A partir de então, o uso de bens patenteados só seria possível mediante o pagamento de royalties aos titulares do direito de propriedade intelectual. O impactante é que o estabelecimento desse novo regime jurídico coincide com o momento em que a epidemia mundial de AIDS ganha novos contornos e atinge proporções catastróficas. Os países subdesenvolvidos, onde se concentram mais de 95% dos casos de infecção pelo vírus HIV e 95% das mortes relacionadas à AIDS4, passaram a ser obrigados a dispensar enormes somas de dinheiro na compra de medicamentos anti-retrovirais, o que punha em xeque a existência de seus programas de saúde ou a universalidade de sua abrangência.

Sabe-se ainda que, sem embargo dos enormes estragos causados pelas moléstias, o desenvolvimento e a descoberta de novos remédios para com-bater doenças infecciosas e parasitárias em países pobres estão praticamente paralisados, uma vez que as empresas farmacêuticas não recuperam os in-vestimentos em pesquisa realizados na comercialização de medicamentos para doenças de terceiro mundo5. Os países em desenvolvimento, embora englobem em torno de três quartos da população da Terra, representamPage 242menos de 10% do mercado mundial de farmacêuticos6. A título de exem-plificação, das quase 1.400 novas drogas aprovadas entre 1975 e 1999, aproximadamente 1% – 13 drogas – tratam especificamente de doenças tropicais7.

Ciente deste contexto, a implementação do TRIPS cria a expectativa de conduzir a um aumento dos preços de medicamentos, ao mesmo tempo em que surge a pergunta se os maiores níveis de proteção da propriedade intelectual seriam acompanhados por um incremento em pesquisa almejando suprir as necessidades médicas dos países menos desenvolvidos8.

É nesse contexto que diversas vozes justicialistas se levantaram e protes-taram por um sistema de patentes condizentes com aquilo que a realidade constitui. A sociedade civil, ONGs, governos e ativistas das mais variadas áreas pregam um modelo em que as regras do comércio internacional e, conseqüentemente, da OMC atendam as mazelas dos mais desfavorecidos em questões de saúde pública. Emergiu um consenso em que o ritmo de expansão das doenças não pode ser determinado por fatores mercadoló-gicos e que certos direitos não podem ser objeto de restrições arbitrárias. A interpretação dos tratados de comércio passaria agora pelo respaldo dos direitos humanos. Enxergam-se as pessoas como sujeitos de direito, titula-res da prerrogativa de poder reivindicar o que lhes é digno, agentes de seu próprio desenvolvimento. A pobreza não mais pode se restringir à ausência de renda deve abranger, todavia, todas as capacidades humanas que per-mitam ao homem buscar seu bem-estar em um caminho repleto das mais variegadas escolhas. Nesse sentido, pobre também é quem não tem acesso à saúde, independentemente de sua situação econômico-financeira.

Seguindo essa linha de pensamento, este artigo vem questionar se é pos-sível que a proteção aos direitos de propriedade intelectual seja usada como política de expansão das capacidades humanas. Para tal, adota a forma de um estudo de caso e toma como exemplo o programa brasileiro de combate a AIDS/HIV, debatendo, por meio de uma extensa pesquisa doutrinária e ju-risprudencial e de análise de leis, decretos e portarias emitidos pelo governo brasileiro até então, tal política de saúde numa perspectiva de interfaces que engloba direitos humanos, desenvolvimento e comércio internacional.

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A epidemia mundial de AIDS

Doenças infecto-contagiosas matam mais de dez milhões de pessoas por ano, sendo que mais de 90% dos casos estão no mundo subdesenvol-vido. As principais causas de enfermidades e falecimentos na África, Ásia e América latina são HIV/AIDS, infecções respiratórias, malária e tubercu-lose9, que respondem por seis milhões de mortes anualmente10. Somente a AIDS foi responsável por 2.052 milhões dos óbitos nessas regiões em 2007, num total de 2.1 milhões em todo o mundo11. Após um quarto de século do primeiro caso relatado da doença no mundo, mais de 27 milhões de vidas foram ceifadas.

O pior é que a epidemia anda a passos largos. De 2006 a 2007, 2.5 milhões de novos infectados chegaram ao mundo, somando-se a um grupo de 33.2 milhões12. Entristece o fato de que a África seja um continente de-vastado pela doença. A região foi responsável por metade do crescimento da epidemia ao longo dos dois últimos anos. Somente o subcontinente subsa-ariano congrega 76 % das mortes relacionadas à enfermidade no mundo, num universo de 22.5 milhões de portadores do vírus, ou melhor, 68 % dos infectados13. A catástrofe social é tamanha que se cogita que haja doze milhões de crianças órfãs. O caso mais grave é o sul-africano, país com o maior número de infectados no mundo e que vive um processo de diminuição populacional e de redução da expectativa de vida sem precedentes decorrente da AIDS e que possui 5.5 milhões de soropositivos, aproxima-damente 12.5 % do total.

Assim como em outras regiões em desenvolvimento, o HIV afeta de maneira desproporcional os trabalhadores em idade produtiva. A título de exemplificação, Suazilândia exibe uma porcentagem de 26 % de infectados entre adultos de 15 a 49 anos14 e de 22,7 % entre jovens mulheres de 15 a 24 anos15, comprometendo assim a força de trabalho ativa nos países em desenvolvimento.

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Segundo o Banco Mundial, isso traz conseqüências econômicas gra-ves. O impacto macroeconômico tem dois componentes centrais. A doença pode tanto reduzir o crescimento do produto interno bruto – PIB – nos países mais afetados, envolvendo efeitos sub-regionais e regionais, quanto diminuir o número de contribuintes de imposto de renda, agravando o impacto econômico negativo16.

Na esteira do crescimento global da doença, seguem a América lati-na e o Caribe. Desde o surgimento da epidemia de HIV na região, quase 700.000 soropositivos já morreram17. Atualmente, algo em torno de 117 mil pessoas foram infectadas, aumentando para 1.83 milhões a população que vive com o vírus18, cifra que engloba em torno de 32 mil crianças me-nores de 15 anos. Em 2007, a AIDS clamou pela vida de 69 mil pessoas19. As maiores epidemias da região estão nos países com grandes populações, especialmente o Brasil, que abriga mais de um terço dos soropositivos da América latina – 620 mil – e contribui com 11 mil vidas à mortalidade regional de 200720, 193 mil desde o surgimento do vírus21.

Particularmente, a magnitude da crise de saúde proporcionada pela AIDS chama atenção pelo fato de que milhões de doentes no mundo subdesenvolvido não têm acesso aos medicamentos anti-retrovirais, estimativa que chega a cinco milhões22. No mundo, enquanto 6.800 novos infectados surgem diariamente, em torno de 5.700 morrem por AIDS, em grande medida devido ao acesso inadequado aos serviços de prevenção e tratamento, o que faz com que a pandemia de HIV continue como a doença infecto-contagiosa que mais desafia a saúde pública23. Segundo a Organi-zação Mundial da Saúde três milhões de pessoas morrem em decorrência da epidemia anualmente, cerca de 80% delas sem terem se beneficiado das terapias medicamentosas disponíveis. Destaca-se, ainda, que o atual nível de financiamento para atividades relacionadas ao tratamento do HIV/AIDS – mesmo que quatro vezes superior ao observado no ano 2001–, repre-Page 245senta apenas um terço da quantia necessária até 2008 para redirecionar os Estados no caminho para a reversão da epidemia24.

Embora tenham ocorrido avanços nos últimos anos, em...

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