União Estável Homoafetiva - Diálogo com Gadamer e Habërle

AutorDjalma Pizarro
Ocupação do AutorTabelião do 2º Ofício de Notas de Uberlândia
Páginas63-72

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Pretendemos, neste capítulo, apresentar uma novel abordagem crítica hermenêutica acerca do reconhecimento da união estável homoafetiva pelos diversos segmentos jurídico-sociais.

Como suporte teórico, o presente enfoque intentará estabelecer um diálogo crítico entre a hermenêutica filosófica (Gadamer)97e o modelo teórico da leitura constitucional, proposto por Peter Habërle98, que apresentam consonância em alguns pontos, especialmente no entendimento do que seja uma "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" e nos fundamentos da hermenêutica filosófica, em cuja abordagem os intérpretes constitucionais pré-compreendem as transformações sociais, e, eventualmente, podem (re) criar a ordem constitucional.

Para tanto, a presente pesquisa demarcará sua experiência sobre uma transformação pontual (sem alteração de texto) já praticada em relação à Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 226, parágrafo terceiro, que tratava originariamente do reconhecimento da união estável entre "homem e mulher", tão-somente, como entidade familiar, sendo certo que as instituições brasileiras - e agora o Supremo Tribunal Federal99- já admitem a união estável entre pessoas do mesmo sexo, conferindo-lhes quase os mesmos direitos e instrumentos protetivos.

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Dentro de tal contexto, demonstraremos que os modelos inter-pretativos oferecidos até agora pelos estudiosos - baseados nos princípios da isonomia, dignidade da pessoa humana e analogia - não são suficientes para esclarecer e tonificar as verdadeiras razões fundantes aptas a justificar a mudança do texto constitucional.

1 Colocação do Problema

As diversas interpretações jurídicas sobre o assunto, bem como as decisões jurisdicionais, embora divirjam sobre o tema - validade legal das uniões homoafetivas - dividem-se entre aquelas que repelem o modelo proposto, e, de outro lado, acatam-no, essas sempre justificando como fundamentação à leitura constitucional dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre as pessoas, do direito de ser feliz (contingencial a todo ser humano), do princípio da isonomia e da interpretação analógica.

A corrente que denega a validade das uniões homoafetivas, embora também seja tratada nesta dissertação, ela o será apenas como marco histórico, uma vez que a corrente predominante já fincou sua vitória, seja tanto pela recepção dos juristas e pensadores do Direito, quanto na jurisprudência majoritária, ou no reconhecimento pelos órgãos públicos, no âmbito legislativo, com a edição da Lei Maria da Penha100, que reconheceu a entidade familiar formada pelas pessoas do mesmo sexo,101e, por fim, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADIN 4277.102Demonstraremos que os fundamentos para o acatamento legal das uniões homoafetivas, já antevistos, embora de inegável valor para

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o enfrentamento do problema, trataram apenas das motivações endógenas da Constituição, ao passo que esta pesquisa evidenciará que as reais motivações são exógenas, decorrentes da força da realidade, da interpretação forçada pelas minorias coletivas, na esteira dos ensinamentos de Gadamer, Konrad Hesse e de Peter Häberle, acerca da força normativa da Constituição e de sua negação, no caso de perecimento da Constituição escrita diante da realidade fática (Hesse); e da nova leitura constitucional forçada pelos intérpretes da dita "sociedade aberta" (Häberle), e na pré-compreensão da realidade sócio-jurídica, decorrente da força das minorias coletivas (Gadamer).

Quando se fala em "direito das minorias", também deverá se falar no seu contraposto, ou seja, "direito das maiorias", para verificar como os dois polos são tratados no tecido jurídico-constitucional.

Na linha de pesquisa de Peter Häberle103, a interpretação constitucional não é feita apenas pelos intérpretes oficiais, mas, também, pela sociedade aberta dos intérpretes, pois o destinatário da norma é participante ativo, muito mais do que poderia supor a interpretação tradicional, dentro do processo hermenêutico.

Dentro da trilha aberta por Konrad Hesse104, que mostrou que a Constituição jurídica não é somente "uma folha de papel", contrariando Lassalle105, comprovando a eventual diferença entre a Constituição jurídica e a Constituição real, e asseverando que a Lei Maior tem uma força normativa, embora essa possa ceder ante a realidade. E esse é justamente um dos objetos desta pesquisa, tendo em vista que a realidade pulsante e provocante de uma minoria coletiva pode efetivamente transformar a Constituição jurídica, sem a correspondente mudança da Constituição escrita, ou, em outros termos, dentro de uma mutação constitucional.

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2 A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição na Visão Habërliana

O fundamento teórico utilizado pelo legislador ordinário, ao regulamentar a prescrição da arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, parágrafo 2º. CF/88) baseia-se iniludivelmente na análise da hermenêutica constitucional proposta por Peter Habërle106, destinada aos intérpretes comuns (os que vivem a e na Constituição), realçando o papel de suporte teórico que a proposta habërliana representa na mudança rotacional da interpretação do Texto Político do Estado.

Para Habërle, a mudança envolve virada paradigmática, pois a doutrina tradicional sempre acoplou o intérprete da Constituição a poucos setores seletos do Estado. "Não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada" nas palavras...

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