A União Estável e o Direito de Herança na Constituição Federal de 1988

AutorTarlei Lemos Pereira
Páginas33-55
A lei não muda a sociedade jamais,
mas, sim, a sociedade é que tem o condão,
o papel e até mesmo a responsabilidade de mudar a lei.”
(Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka)
C A P Í T U L O I
A UNIÃO ESTÁVEL E O DIREITO DE HERANÇA
NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Sumário: 1.1 A união estável dentro do contexto de “família como base da sociedade
e com especial proteção do Estado” (artigo 226, § 3º, da Constituição Federal); 1.2 O
direito de herança como corolário do direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXX,
da Constituição Federal); 1.2.1 O princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana aplicado ao direito sucessório (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal);
1.2.2 O princípio constitucional do não retrocesso social ou da proibição da evolução
reacionária (effet cliquet) e sua relação com o artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro
A Constituição cidadã de 1988, para efeito da proteção do Estado, reconhe-
ceu juridicamente, em seu artigo 226, § 3º, a união estável entre homem e mulher,
garantindo-lhe a proteção e determinando ao legislador infraconstitucional a edi-
ção de lei que facilitasse sua conversão em casamento1.
Com isso, segundo alguns autores2, não deixa de dar certa preferência ao
casamento3, o que culmina por repercutir no campo sucessório dos conviventes,
1 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional.
5ª edição. São Paulo: Atlas, 2005. p. 2.161.
2 É o caso, por exemplo, de Yussef Said Cahali, para quem “qualquer que seja a inter pretação que se
procure extrair do citado § 3º [do artigo 226 da Constituição Federal], é certo que o casamento continua mantendo
a sua dignidade, não se lhe equiparando, para os efeitos da lei, a simples união estável entre o homem e a mulher.”
(Aut. cit. Divórcio e separação. 11ª edição rev., ampl. e atual. de acordo com o Código Civil de
2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 23, item 1)
3 Nesse sentido: SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2009. p. 853.
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conforme veremos ao longo deste estudo. Não obstante, apressamo-nos em dizer,
“o que quis o legislador constitucional, parece-nos indene de dúvida, foi equalizar o casamento
e a união estável, emparelhando cônjuges e companheiros em uma mesma linha de proteção pelo
Estado, eis que tanto uma situação como outra se desenham constitucionalmente como entidades
familiares”4.
Também o direito à herança é assegurado no texto constitucional (artigo 5º,
inciso XXX), consubstanciando-se em verdadeiro corolário ao direito de proprie-
dade, eis que o rearma mesmo após o decesso do titular dos bens, com a conse-
quente transmissão a seus herdeiros (heres). A morte do autor da herança é elemen-
to essencial da sucessão, pois “inexiste herança de pessoa viva (viventis nulla hereditas)”5.
A seguir, trataremos mais pormenorizadamente de ambos os temas (união
estável e herança), traçando-lhes o perl constitucional, além de enfrentarmos a
questão da dignidade da pessoa humana frente ao direito sucessório, bem como a
proibição do retrocesso social.
Antes, porém, mister frisarmos que a Constituição já não é apenas o docu-
mento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irra-
diando seus valores e conferindo-lhe unidade6. A bom tempo, “superamos a crônica
indiferença que, historicamente, se mantinha em relação à Constituição. E, para os que sabem,
é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor”7.
No Direito contemporâneo, a Constituição passou a ser compreendida como
um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos supra-
positivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais
desempenham um papel central. Rememore-se que o modelo jurídico tradicional
fora concebido apenas para a interpretação e aplicação de regras. Modernamente,
Lafayette Rodrigues Pereira denia o casamento como “ato solene pelo qual duas pessoas de sexos
diferentes se unem para sempre, sob a promessa recípr oca de delidade no amor e da mais estreita comunhão da
vida” (Aut. cit. Direito de família. Anotações e adaptações ao Código Civil por José Bonifácio de
Andrade e Silva. Rio de Janeiro: Virgilio Maia & Comp., 1918. p. 29). Carlos Alberto Bittar, a seu
turno, conceituava casamento dizendo ser “o acordo de vontades tendentes à comunhão espiritual e material
de pessoas de sexos opostos, dispostas a constituir família, nos termos da lei” (Aut. cit. Direito de família.
2ª edição. Atualizada por Carlos Alberto Bittar Filho e Márcia Sguizzardi. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006. p. 59)
Contudo, ressalva Sílvio de Salvo Venosa: “Se, por um lado, o casamento ainda guarda posição de proemi-
nência sociológica e jurídica em nosso meio, não é menos verdadeiro que a entidade familiar sem casamento goza do
beneplácito da sociedade e de proteção constitucional...” (Aut. cit. Direito Civil: direito de família. vol. 6.
10ª edição. São Paulo: Atlas, 2010. p. 22)
4 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder... p. 495.
5 VIANA, Marco Aurelio S. Teoria e prática do direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 1987.
p. 6, item 5.
6 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 60.
7 Ibidem, p. 247.

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