Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumidor na União Europeia e Seus Reflexos em Portugal: a inversão do paradigma

AutorMário Frota
CargoFundador e primeiro presidente da AIDC - Associação Internacional de Direito do Consumo
Páginas43-77

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Pela Directiva 2008/48/CE, de 23 de Abril de 2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, que disciplina os contratos de crédito ao consumidor, ter-se-á operado a inversão do que poderia considerar-se o paradigma vigente: o da celebração temerária, irresponsável de contratos por iniciativa dos dadores de crédito - de instituições de crédito como de sociedades financeiras.

De harmonia com as diretrizes nela plasmadas, incumbe aos Estados-membros adotar medidas tendentes a incentivar práticas responsáveis em todas as fases da relação de crédito, tendo em conta as especificidades do mercado de crédito. Práticas responsáveis que se dirigem tanto a dadores como a consumidores de crédito, no quadro do regime aplicável.

De banda dos consumidores tais medidas incluirão, por hipótese, a informação e a educação para os serviços financeiros, nomeadamente advertências no tocante aos riscos que advêm do incumprimento das obrigações a que os consumidores se adscrevem e do sobre-endividamento que sobe em espiral nas distintas praças de crédito, um pouco por toda a parte.

De banda dos dadores de crédito, em um mercado em expansão, é especial-mente importante que as instituições de crédito e as sociedades financeiras não se permitam conceder empréstimos de modo irresponsável ou não o façam sem se munirem previamente de garantias acerca da solvabilidade dos consumidores que se habilitem à sua concessão.

Tem-se como imperioso que os Estados-membros, através das autoridades para o efeito criadas, efetuem de modo eficiente e tempestivo a necessária super-visão para evitar eventuais defecções, aparelhando o arsenal punitivo com o fito de reprimir os mutuantes que se precipitem irresponsavelmente em operações temerárias de concessão de crédito.

Sem prejuízo das disposições vigentes em matéria de risco de crédito no domínio do acesso à atividade das instituições de crédito e sociedades financeiras e ao seu exercício, que se consagram em cada um dos ordenamentos jurídicos mercê também de uma diretiva editada neste particular, os dadores de crédito deverão ser responsáveis por verificar, individualmente, em concreto, as condições de solvabilidade do consumidor que se habilite a um qualquer contrato. Para o efeito, há que facultar-se-lhes o acesso a acervos de informação (bancos, bases de dados) que reflitam o perfil do consumidor e aos elementos que o próprio consumidor carreie não só aquando dos preliminares negociais, como ainda na vigência de relações contratuais duradouras, continuadas ou continuativas, como são as do estilo.

Às autoridades de supervisão, em cada um dos Estados-membros, cumprirá ainda emitir instruções e orientações adequadas aos dadores de crédito de molde

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a que a irresponsabilidade não campeie e se sofreiem implacavelmente eventuais manifestações nesse sentido.

Um voto se consigna nos consideranda da directiva, a saber, o de que os consumidores ajam com prudência e respeitem as obrigações contratuais a que se adscreverem. O que, de resto, se afigura estulto, a menos que o direito haja perdido a coatividade que, como ordem normativa, se lhe reconhecia.

Conquanto tais diretrizes se não espelhem em qualquer das normas da Directiva do Crédito ao Consumidor, constituindo meras intenções ínsitas nos considerandos, vale dizer, no preâmbulo do instrumento de que se trata (que os Estados-membros acatarão ou não), cumpre significar que o Estado Português dotou o ordenamento de regras que absorvem ou assimilam tais propósitos, sujeitando a coimas, vale dizer, a sanções com tradução patrimonial (substancialmente elevadas) as violações que entretanto se detectarem.

Repare-se no que se define no art.º 10.º do diploma legal derivado (DL 133/2009, de 2 de Junho) em que se consubstanciou em Portugal a transposição do texto europeu, sob a epígrafe "dever de avaliar a solvabilidade do consumidor", susceptível de se "traduzir" do modo que segue:

Em momento anterior ao da celebração do contrato, cumpre ao credor avaliar a solvabilidade do consumidor, tanto pelos dados por este carreados, como pela consulta, que se tem por imperativa, à Central de Responsabilidades de Crédito na dependência do Banco Central, vale dizer, do Banco de Portugal, no caso.

O credor pode, complementarmente, proceder à avaliação da solvabilidade do consumidor pela consulta da lista pública de execuções ou de outras bases de dados consideradas para o efeito de todo imprescindíveis.

Em caso de rejeição do crédito requerido com base nos dados obtidos, deve o dador informar o consumidor imediata, gratuita e justificadamente do fato, bem como dos elementos constantes das bases consultadas, salvo se as informações daí decorrentes forem proibidas por disposição do direito da União Europeia ou do ordenamento jurídico nacional, ou se for contrária a objectivos de ordem pública ou de segurança pública.

Se, após a celebração do contrato, os co-contraentes se propuserem aumentar o montante do crédito, a informação financeira de que o dador dispõe deve ser actualizada, de novo se procedendo à avaliação da solvabilidade do consumidor com as consequências daí emergentes.

É ESPECIALMENTE IMPORTANTE QUE AS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E AS SOCIEDADES FINANCEIRAS NÃO SE PERMITAM CONCEDER EMPRÉSTIMOS DE MODO IRRESPONSÁVEL

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O ónus da prova do expediente de avaliação da solvabilidade incumbe ao dador de crédito, por disposição expressa da lei.

A Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal (CRC) constitui realidade incontornável, susceptível de se enquadrar e definir como:

uma base de dados, gerida pela Banco de Portugal, com informação prestada pelas entidades participantes, i.e., instituições que concedem crédito, sobre os créditos concedidos, a que está associado um conjunto de serviços relativos ao seu processamento e difusão. A CRC obedece a todos os requisitos de proteção de dados individuais, de acordo com o estabelecido pela Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Esta base de dados é alimentada por informação de natureza individual. O Banco de Portugal procede à sua centralização e divulgação pelas entidades participantes em termos agregados.

A CRC contém informação sobre as responsabilidades de crédito efetivas assumidas por qualquer pessoa singular ou coletiva perante as entidades participantes, bem como as responsabilidades de crédito potenciais que representem compromissos irrevogáveis.

Constituem exemplos de responsabilidades efetivas:

. Empréstimos para aquisição de habitação;

. Empréstimos para aquisição de automóveis, de mobiliário e de outros bens de consumo ou serviços;

. Empréstimos para aquisição de títulos de crédito (ações, obrigações, etc.);

. Desconto de letras e outros efeitos comerciais;

. Descobertos em contas bancárias;

. Operações de locação financeira (leasing) e de factoring;

. Montantes utilizados de cartões de crédito.

Constituem exemplos de responsabilidades potenciais as situações que a seguir se perspectivam, quando representem compromissos irrevogáveis das entidades participantes:

. Montantes não utilizados de cartões de crédito;

. Linhas de crédito contratadas;

. Garantias prestadas pelas entidades participantes;

. Quaisquer outras facilidades de crédito suscetíveis de conversão em dívidas efetivas. São exemplos de entidades participantes na CRC:

. os bancos;

. as caixas económicas;

. a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e as caixas de crédito agrícola mútuo;

. as instituições financeiras de crédito;

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. as sociedades financeiras para aquisição a crédito (SFAC);

. as sociedades de locação financeira;

. as sociedades de factoring;

. as sociedades emitentes ou gestoras de cartões de crédito.

E, dado que se pretende criar um Mercado Interno de Serviços Financeiros (delimitado pelas fronteiras físicas exteriores dos Estados que se reúnem no seio da União Europeia), mister se torna se faculte o acesso às bases de dados a quem quer, o que se plasma no artigo 11.º da lei vigente em Portugal, com a orientação que segue:

. As entidades gestoras das bases de dados disponíveis em Portugal - susceptíveis de permitir ajuizar da solvabilidade dos consumidores - obrigam-se a assegurar, em condições de reciprocidade, o acesso não discriminatório das instituições de crédito e das sociedades financeiras que operem em outros Estados-membros a tais bases. O Banco de Portugal permite o acesso dos dadores de crédito dos mais Estados-membros ao acervo da Central de Responsabilidades de Crédito, observados determinados os pressupostos da lei.

Rejeitado o pedido de financiamento com fundamento nos dados colhidos, o dador de crédito deve transmiti-lo ao consumidor imediata, gratuita e justificadamente e dar de análogo modo notícia dos elementos pertinentes ao consumidor, salvo se a prestação de tais informações se achar vedada por outras disposições de direito da UE ou se tiver como oposta a interesses de ordem pública ou de segurança pública.

As informações veiculadas pelo Banco de Portugal reservam-se exclusivamente às instituições financeiras, cumprindo-lhes observar, de acordo com a Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, e o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro, a protecção dos dados relativos às pessoas singulares, sendo-lhes vedada a...

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