Under the ng'oma noise: the judiciary in dispute by the quilombolas struggles/ Sob o rufar dos ng'oma: O judiciario em disputa pelos quilombolas.

AutorVieira, Fernanda

Introducao

As comunidades quilombolas sao grupos etnicos predominantemente constituidos pela populacao negra, rural ou urbana, que se autodefinem a partir das relacoes com seus territorios como espaco de sobrevivencia, de identidade e de reproducao espiritual e cultural. Ainda que o processo constituinte brasileiro tenha sido um marco politico fundamental para o atendimento das reivindicacoes das comunidades quilombolas do Brasil--especialmente porque o artigo 68 do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias da Constituicao Federal de 1988 (2) inaugurou o reconhecimento do direito dessas comunidades as terras que ocupam--a realizacao das promessas constitucionais e o processo de demarcacao territorial ainda carecem de efetivacao.

Essa realidade deve-se em grande medida as praticas e mentalidades ainda presentes no campo institucional e nao-institucional que, por acao ou omissao, dificultam e obstaculizam a realizacao desses direitos. No campo naoinstitucional verifica-se a atuacao dos grandes proprietarios de terras que tem ajuizado inumeras acoes na tentativa de anular os procedimentos administrativos de titulacao de territorios quilombolas. No campo institucional, verificam-se praticas advindas dos poderes executivo, legislativo e judiciario que tambem tem criado os mais variados obices para a garantia de tal titulacao.

Pensar os territorios quilombolas e o papel do judiciario na sua garantia e colocar em questao, antes de tudo, a propria matriz do direito moderno ocidental e a sua capacidade contemporanea de ser, de fato, garantidora dos direitos dos povos tradicionais nao ocidentais. O quanto ha de silenciamento por parte da razao moderna (marca do direito ocidental) sobre repertorios, experiencias, saberes e outros paradigmas em termos de producao juridica advindos dos povos indigenas e quilombolas, faz com que a propria compreensao academica se insira numa moldura limitadora.

Nao sem razao, Cesar Augusto Baldi (2014) alerta para a ocorrencia de um apartheid epistemico que retira do cenario intelectual temas concernentes ao campo juridico e concepcoes outras acerca da propriedade. Pensar como o direito ocidental vem ressignificando o conceito de territorio quilombola, portanto, nos auxilia na compreensao do processo de apartheid epistemico dentro das instituicoes do sistema judicial e como o direito ao territorio quilombola vem sendo contemplado pelo poder judiciario brasileiro.

Desse modo, o presente artigo busca apresentar uma visao geral do papel do judiciario no ambito das disputas legais sobre o reconhecimento e a titulacao de territorios onde vivem tradicionalmente comunidades quilombolas. Buscamos analisar as nuances do discurso judicial a partir da analise de tres decisoes judiciais envolvendo conflitos pelo reconhecimento da territorialidade quilombola: a primeira, proferida pelo Ministro Relator Cezar Peluso, no ambito da Acao Direta de Inconstitucionalidade no 3.239, ajuizada no Supremo Tribunal Federal pelo partido Democratas (DEM) contra o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003 (3); a segunda decisao, relativa ao caso da comunidade de Santana (localizada no Estado do Rio de Janeiro), cujo processo encontra-se atualmente suspenso no judiciario; e a terceira decisao, relativa a comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha, (localizada no Estado do Parana), cujo reconhecimento territorial foi garantido pelo Tribunal Regional Federal da 4a Regiao (TRF-4).

O desenvolvimento de tal proposta ocorreu com base na analise de conteudo das referidas decisoes judiciais o que possibilitou identificar os argumentos juridicos das decisoes analisadas, assim como o modo como o judiciario tem respondido as lutas dessas comunidades; e, complementarmente, na analise de fontes documentais que permitiram conhecer alguns dos aspectos socio-historicos de ambas comunidades.

O artigo sera desenvolvido em cinco partes. A primeira, apresentara um panorama geral da politica de reconhecimento dos territorios quilombolas, ocasiao em que se demonstrara como setores conservadores tem reagido a tal politica por meio da interposicao da ADI 3.239 no Supremo Tribunal Federal; a segunda parte, se debrucara sobre a analise dos argumentos do voto do Ministro Relator Cezar Peluso no ambito da ADI 3.239; a terceira parte sustentara a existencia de "linhas abissais" (Santos, 2007) no ambito do sistema judiciario, considerando que as praticas e a ideologia da experiencia colonial brasileira se expressam ainda hoje nas relacoes sociais e nas instituicoes, rebaixando e negando culturas e saberes de determinados grupos sociais, como as comunidades quilombolas; a quarta e quinta partes, apresentarao dois casos judicializados de luta por territorio quilombola, para demonstrar o uso do campo judicial por parte de proprietarios e grupos empresariais para suspender processos administrativos voltados a efetivacao de direitos coletivos territoriais.

A titulo de conclusao, se defendera que o campo judiciario tem respondido de forma heterogenea a mobilizacao juridica e politica das comunidades quilombolas, ora garantindo o reconhecimento de direitos territoriais, ora negando esses mesmos direitos. Ademais, se afirmara que a analise do papel do interprete judicial em suas subjetividades para compreensao das conquistas no espaco judicial, obriga-nos a reconhecer que nao podemos falar em judiciario de maneira geral, e sim de judiciarios, em razao do reconhecimento dessa pluralidade que marca o interprete.

  1. O direito brasileiro e as brechas para o reconhecimento dos territorios quilombolas a partir da Constituicao Federal de 1988

    O direito as terras pelas comunidades quilombolas foi reconhecido no artigo 68 do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias (ADCT) da Constituicao Federal de 1988 (CF/88). Tal artigo, reconheceu o direito de acesso a terra as comunidades remanescentes de quilombos, com a obrigacao do Estado emitir os titulos de propriedade (4). Ademais, os artigos 215 e 216 da CF/88 positivaram o dever do Estado de proteger as manifestacoes culturais indigenas e afrobrasileiras, bem como os bens de natureza material e imaterial--portadores de referencia a identidade e a memoria dos diferentes grupos formadores da sociedade--entendidos como patrimonio cultural brasileiro.

    A regulamentacao do direito quilombola passou cerca de sete anos, apos a promulgacao da Constituicao Federal de 1988, sem qualquer instrumento legal de abrangencia nacional que guiasse a sua efetivacao (Prioste, 2010). No ano de 2001, foi editado o Decreto 3.912, o qual delimitou o marco temporal para a caracterizacao das comunidades como "remanescentes de quilombos" ao periodo entre 1888 ate 5 de outubro de 1988, e utilizou uma nocao de quilombo vinculada a definicao colonial prevista na Convencao Ultramarina de 1740. Tal decreto foi posteriormente revogado pelo Decreto 4.887 de 2003 que, por sua vez, aboliu a exigencia temporal de permanencia no territorio e--com base no criterio da autodefinicao previsto na Convencao 169 da OIT para povos indigenas e tribais--estabeleceu como definicao da categoria remanescentes e quilombos "grupos etnico-raciais, segundo criterios de autoatribuicao, com trajetoria historica propria, dotados de relacoes territoriais especificas, com presuncao de ancestralidade negra relacionada com a resistencia a opressao historica sofrida" (art. 2[degrees]. Decreto 4.887/2003). O Decreto tambem estabeleceu a necessidade de desapropriacao das areas reivindicadas por particulares, bem como, a titulacao coletiva das terras dos quilombos e impediu a alienacao das propriedades tituladas.

    A previsao de autodefinicao e de suma relevancia porquanto "parte do pressuposto que nao cabe ao poder publico, nem a nenhum pesquisador, imputar identidades sociais" (Leite, 2010: 24). Esse principio vai de par com a Convencao 169 da OIT e com o Decreto Federal 6.040/07 que instituiu a Politica Nacional de Desenvolvimento Sustentavel dos povos e Comunidades Tradicionais, definindo-os como:

    Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas proprias de organizacao social que ocupam e usam territorios e recursos naturais como condicao para sua reproducao cultural, social, religiosa, ancestral e economica, utilizando conhecimentos, inovacoes e praticas gerados e transmitidos pela tradicao. Em razao de tal orientacao, o Decreto 4.887/2003 vem sendo atacado por varios setores contrarios ao reconhecimento do direito quilombola. Uma das reacoes mais emblematicas foi a do antigo Partido da Frente Liberal (atual Democratas/DEM) o qual impetrou a Acao Direita de Inconstitucionalidade no 3.239/2004 (5) no ambito do Supremo Tribunal Federal, visando a declaracao da inconstitucionalidade de tal decreto, sob o fundamento de que a materia deveria ser regulada por lei e nao por decreto presidencial. Alem disso, para o Partido, o decreto produziu uma interpretacao extensiva das categorias quilombolas e territorio e introduziu equivocadamente criterio de autoatribuicao.

    Por outro lado, setores pro-quilombolas consideram descabida a pretensa inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, pois o artigo 68 do ADCT reconhece o direito fundamental das comunidades quilombolas sendo, portanto, autoaplicavel (assim como previsto no art. 5[degrees], [section]1[degrees] da CF/88), ou seja, sua aplicacao independe de edicao de lei complementar.

    De acordo com Quintans e Lopes (2014), um outro aspecto contra argumentado por antropologos que trabalham com as comunidades quilombolas refere-se a definicao dessas comunidades. Segundo as autoras, os antropologos propoem um conceito "ressemantizado" (Figueiredo, 2008), o qual pressupoe uma interpretacao extensiva dos quilombolas como grupos etnicos, em oposicao ao conceito "dicionarizado" que interpreta o artigo constitucional de forma restrita e entende os territorios de quilombos unicamente como espacos de "negros fugidos" (QUINTANS e LOPES, 2014).

    Exemplo dessa interpretacao "dicionarizada"...

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