Uma visão crítica da parafiscalidade

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas519-527

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1. Introdução

Com a ascensão do Estado Social, tornou-se necessária uma maior ação estatal para a garantia dos direitos e das liberdades dos indivíduos, pelo que o tributo tornou-se instrumento de suma relevância para financiamento das prestações positivas a serem fornecidas pela Administração Pública à sociedade.

Contudo, o famoso dever fundamental de pagar tributos não pode ser irrestrito e ilimitado sob a justificativa do dever de solidariedade no rateio do custo do Estado desejado pela sociedade, motivo pelo qual este dever fundamental, tanto no ordenamento jurídico pátrio quanto alhures, encontra-se estritamente vinculado ao princípio de capacidade contributiva.

Neste contexto, ganhou espaço a ideia da parafiscalidade como fonte de custeio para as atividades tipicamente sociais, que são desempenhadas por entidades que correspondem a uma longa manus do Estado (conhecidas por paraestatais).

Tendo esse pano de fundo, o presente artigo tem por escopo analisar a parafiscalidade, desde sua origem até os dias atuais, especialmente quanto à evolução do tema no Brasil.

Será dada especial atenção à natureza jurídica das contribuições sociais, chamadas por muitos de figuras anômalas ou sui generis e, ao final do artigo, serão trazidas conclusões sobre o tema e a necessidade de uma reforma tributária no Brasil.

2. Origens da parafiscalidade

O Estado Fiscal do qual hoje tanto se fala é traduzido como aquele cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos, tendo sido a característica dominante do Estado Moderno, não obstante a sua evolução na passagem do Estado Liberal para o Estado Social.3

Sob a égide do Estado Liberal, preconizava-se a ideia de proteção da propriedade e das liberdades do indivíduo, pelo que não era admissível nenhum ato arbitrário do Estado que violasse a propriedade, tornando-se necessária a aprovação de tributos pelo parlamento (ideia de autotributação ou autoconsentimento, famosa pelo brocardo no taxation without representation).

Nesta época, sob a influência da crença na “mão invisível” da economia, defendia-se a desnecessidade do intervencionismo estatal e a ideia de neutralidade (econômica e social) da tributação, isto é, a tributação deveria ter natureza meramente arrecadatória e deveria ser mínima, de modo a deixar a maior parcela dos recursos nas mãos do setor produtivo da economia. Desta feita, tanto do ponto de vista do gasto público quanto da tributação, o Estado deveria evitar qualquer medida que tivesse como consequência desviar o mecanismo natural de distribuição do mercado, tendo como resultado o afastamento de tributos aduaneiros protecionistas, subvenções e também auxílios sociais.4

Vigorou neste período a justiça comutativa5 baseada no princípio do custo benefício, que determina que cada um deve pagar em razão dos benefícios obtidos, passando o tributo a ser visto como expressão da liberdade. Neste contexto, as exações tributárias cujos contornos se definiram mais nitidamente foram os impostos e as taxas, e os mecanismos de controle sobre a sua instituição se apoiaram numa visão causalista de mundo (teoria do fato gerador) própria do Estado de Direito, prestigiando os meios definidos (fatos legalmente qualificados).6

Neste contexto, surgiram as raízes da postura positivista exacerbada e a defesa de que a interpretação jurídica deveria ser neutra, tendo como referencial único a letra da lei. Logo, o valor em voga era o da segurança, em virtude do alto grau de previsibilidade das condutas do Poder Público e da dualidade existente entre Estado e sociedade.7

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Com o advento do século XX, o Estado Fiscal passa a desenvolver-se sob a forma de Estado Social ou Estado de Bem--Estar, prevalecendo a ideia de liberdade positiva, que tem por finalidade garantir direitos para todos, inclusive os sociais. O Estado Fiscal Social, movido por preocupações de funcionamento global da sociedade e da economia, teve por base uma tributação alargada, exigida pela estrutura estadual, caracterizando-se, portanto, num estado economicamente interventor e socialmente conformador.

Neste cenário, passaram a vigorar as ideias de justiça distributiva8 e de solidariedade social, que, conjugadas, se resumem na convicção de que o financiamento das ações estatais (como saúde pública e educação) cabe a toda sociedade, preferencialmente através de impostos.

Assim sendo, visando atingir determinados objetivos econômicos e suprir as necessidades sociais, o Estado passou a atuar positivamente mediante a criação de entidades específicas, consideradas como uma longa manus do Estado. Estruturas essas que necessitavam de recursos financeiros para cumprir com seus objetivos, pelo que começaram a cobrar da coletivi-dade certas quantias que se justificavam em função das finalidades almejadas e que eram diretamente arrecadas por tais entidades9.

Surgiu então a figura das contribuições, cuja preocupação não é tanto com as causas (fatos geradores), mas predominantemente com as finalidades buscadas (de caráter social, de intervenção no domínio econômico) próprias do Estado Social.10 Daí foi criada a nomenclatura “parafiscalidade”, visto que tais contribuições passaram a ser arrecadadas por entidades que se encontravam “ao lado” do Estado e com a afetação de suas receitas aos fins específicos a que se destinavam tais entidades.

Com o surgimento desta nova figura e das entidades inter-mediárias que se encontram entre o Estado e os cidadãos, mudou-se o enfoque dado às ideias de fraternidade e solidariedade, passando a solidariedade a ser vista como um elo que une um grupo identificado em função de certos interesses, objetivos e necessidades, ou seja, um elo que une alguns e não todos.11

Na terceira fase do Estado Fiscal, correspondente ao Estado Social e Democrático de Direito, tornou-se necessário ponderar os valores de liberdade e solidariedade e unir os elementos de justiça comutativa com os da justiça distributiva, viabilizando o surgimento da solidariedade de grupo (também chamada de custo-benefício coletivo), em relação às contribuições parafiscais através da referibilidade de grupo. As contribuições parafiscais, portanto, buscam fundamento de validade na solidariedade de grupo, em virtude de serem uma forma de imposição de encargo fiscal somente sobre o grupo ou as pessoas que dele se beneficiam. Assim sendo, a solidariedade social em sentido genérico passou a se restringir aos impostos.12

Emanuelle Morselli, um dos precursores no estudo da dogmática da parafiscalidade, distingue tributos com finalidade eminentemente política (como os impostos) e outros com fins sociais e econômicos (como as contribuições sociais ou impostos parafiscais). Para Morselli, a parafiscalidade relaciona-se com os deveres especiais atinentes aos fins econômicos ou sociais – que, por sua vez, dizem respeito a determinados grupos ou categorias profissionais – garantidas ou reconhecidas pelo Estado como organismos institucionais.13

Enaltecendo a finalidade social, a parafiscalidade começou a ser vista como justificativa para a nova forma interventiva do Estado, na tentativa de preservar o paradigma da ação estatal neutra, ao lado de um novo viés redistributivo e com pretensões de correção das falhas do modelo capitalista.

Além disso, a criação da parafiscalidade, de certa forma, foi uma saída para estimular o pagamento de tributos sem reações ou resistência por parte dos contribuintes, haja vista que essa nova forma de contribuição possui finalidade específica e arrecadação vinculada a tal fim.14

Ainda que com outras nomenclaturas, é possível afirmar que a parafiscalidade se desenvolveu durante os séculos. Há quem diga que desde o Império Romano já existiam figuras parecidas15, todavia, o início da intervenção direta do Estado com finalidades sociais só é visível a partir da edição da Lei dos Pobres (Poor Law) na Inglaterra, no século XVII, especificamente em 1601, e a criação de uma contribuição obrigatória, arrecadada pela sociedade em prol da assistência social.16

Contudo, há que se reconhecer que a gênese da proteção previdenciária garantida pelo Estado é a Lei de Bismark, promulgada em 1883 na Alemanha, mediante a qual foram instituídas contribuições exigidas compulsoriamente dos participantes do

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sistema de seguro de doença, posteriormente ampliado pelo seguro de acidentes de trabalho e de invalidez e velhice em 1884 e 1889, respectivamente.17

Considerando que até aquele momento os sistemas securitários eram exclusivamente privados, a Lei de Bismark passou a ser vista como o marco da previdência social no mundo, servindo de influência para inúmeros países. Há, inclusive, que se destacar que a parafiscalidade encontrou grande amparo em regimes autoritários e totalitaristas (especialmente no fascismo italiano, que perdurou de 1922 a 1943, e na França de Vichy, nos anos de 1940 a 1944), que a utilizavam como escusa às garantias tradicionais dos contribuintes, cobrando-as e majorando-as em flagrante violação às limitações ao poder de tributar constitucionalmente estabelecidas.

Acompanhando a evolução da parafiscalidade no mundo, merece destaque também o modelo beveridgiano que surgiu na Inglaterra em 1942 com o relatório Beveridge em oposição ao modelo bismarkiano. Enquanto neste a proteção não era universal, mas limitada aos trabalhadores e o financiamento se dava por meio de contribuições sociais dos trabalhadores e das empresas, no modelo beveridgiano pregava-se a universalidade de atendimento, com financiamento por meio de impostos, arrecadados de toda a sociedade.18

Todavia, o crescimento do Estado em sua conotação de provedor do bem-estar resultou na adoção de um modelo híbrido de...

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