Uma revolução conservadora na edição

AutorPierre Bourdieu
CargoProfessor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e do Collège de France
Páginas198-249
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p198/
198198 – 249
Direito autoral e licença de uso: Este artigo está licenciado sob uma Licença Creative
Commons. Com essa licença você pode compartilhar, adaptar, para qualquer fim, desde que
atribua a autoria da obra, forneça um link para a licença, e indicar se foram feitas alterações.
Uma revolução
conservadora na edição12
Pierre Bourdieu3
Resumo4
Assim como o livro, objeto de duas faces – econômica e simbólica –, é tanto mercadoria quanto
significação, o editor é também um personagem duplo, condenado a conciliar a arte e o dinheiro,
o amor à literatura e a meta de lucro, por meio de estratégias que se situam em algum lugar entre
dois extremos: a submissão cínica aos critérios comerciais e a indiferença heroica ou desatinada
às necessidades econômicas. Contra a ilusão da autonomia das relações de “decisão” visíveis
(editor, equipes de avaliação, pareceristas, diretores de coleção), que leva a ignorar as coerções
do campo, este artigo mostra os determinantes econômicos e sociais das estratégias editoriais. A
partir do estudo de 61 editoras de obras de literatura francesa ou traduzidas que foram publicadas
entre julho de 1995 e julho de 1996, uma análise de correspondência múltipla permite vislumbrar
a estrutura do campo editorial. Observa-se, antes de mais nada, do ponto de vista do volume
global do capital acumulado pelas editoras, a oposição entre as grandes empresas mais antigas,
que acumulam todos os tipos de capital (econômico, comercial e simbólico), cujo paradigma
é a Gallimard, e as pequenas empresas recentes que, estando na fase inicial da acumulação,
são menos ou mais desprovidas de todo tipo de capital, mesmo quando possuem certo capital
1 Publicado originalmente em: BOURDIEU, Pierre. Une révolution conservatrice dans l’édition. Actes de la Re-
cherche en Sciences Sociales. v.. 126-127, mars 1999. Édition, Éditeurs (1), p. 3–28.
2 Tradução de Luciana Salazar Salgado e José de Souza Muniz Jr. Agradecemos a leitura e as sugestões de Sergio Miceli.
3 Pierre Bourdieu (1930-2002) foi professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e do Collège
de France.
4 Este trabalho se baseia em uma pesquisa bibliográfica e na coleta de dados estatísticos em arquivos de
editoras, as quais foram realizadas por Paul Dirkx; em 38 entrevistas em profundidade (e, em alguns casos,
repetidas) com editores e diretores de coleção distribuídos no conjunto do campo editorial, e também com
tradutores, críticos, profissionais administrativos, assessores de imprensa, responsáveis pela gestão de direi-
tos estrangeiros, que foram realizadas por Pierre Bourdieu, Rosine Christin, Paul Dirkx, Saliha Felahi, Claire
Givry, Isabelle Kalinowski. Os dados submetidos à análise estatística foram preparados e controlados por
Rosine Christin. A realização e a transcrição das entrevistas foram financiadas pelo observatório France-
Loisirs da leitura.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 39 - Mai./Ago. de 2018
199198 – 249
simbólico na forma de estima ou admiração de alguns “descobridores”, críticos e escritores de
vanguarda, livreiros ilustrados e leitores bem informados. O segundo fator observável é o que
distingue as editoras de acordo com a estrutura de seu capital, ou seja, conforme o peso relativo
de seu capital financeiro (assim como de seu poderio comercial) e do capital simbólico de seu
passado recente ou de sua atividade atual (por oposição àquele que elas acumularam desde a
sua fundação). Já o terceiro eixo de análise separa as editoras que não publicam traduções ou
publicam poucas e sobretudo de textos versados em línguas pouco difundidas, e aquelas que,
mais à mercê das coerções do mercado, traduzem muito e sobretudo do inglês, ou seja, literatura
comercial de sucesso garantido.
Palavras-chave: Pierre Bourdieu. Edição. Literatura. Capital simbólico.
O editor é aquele que tem o extraordinário poder de assegurar a pu-
blicação, ou seja, de fazer com que um texto e um autor tenham acesso à
existência pública (Öentlichkeit), conhecida e reconhecida5. Essa espécie
de “criação” implica quase sempre uma consagração, uma transferência de
capital simbólico (análoga à de um prefácio) cuja importância é proporci-
onal ao grau de consagração daquele que a realiza, sobretudo por meio de
seu “catálogo”, que se dene pelo conjunto de autores já publicados, sendo
eles também menos ou mais consagrados.
Conhecimento e desconhecimento
Para compreender o processo de seleção que, na produção escrita,
distingue o “publicável” do “impublicável” (para um editor em particular
e principalmente para o conjunto dos editores), é necessário considerar
o dispositivo institucional (equipes de avaliação, pareceristas, diretores de
coleção, especialistas ou não etc.) que, em cada editora, se encarrega de
fazer a seleção dos manuscritos submetidos (por meio de intermediários e
indicações ou por simples envio postal).6 Mais precisamente, é preciso ob-
servar as relações objetivas entre os diferentes agentes que contribuem para
a decisão de publicar, ou seja, além dos conselhos e comitês, instâncias es-
pecialmente destinadas a este m, o próprio editor e seus achegados, os di-
retores de coleção, os pareceristas, o pessoal administrativo, os conselheiros
5 Joachim Unseld (1984) analisou, a respeito do caso de Kafka, a figura quase divina do editor, cujos “vereditos”
podem tirar do nada ou, ao contrário, relegar ao nada, o escritor que o interpela.
6 Ver: SIMONIN e FOUCHÉ (1999, p. 103–115).
Uma revolução conservadora na edição | Pierre Bourdieu
200 198 – 249
inuentes que podem funcionar como diretores de coleção extraociais, e
por m os tradutores, que, em muitos casos, recomendam a publicação de
autores estrangeiros.
No entanto, toda a lógica do campo editorial e a crença literária que aí
se engendra predispõem a esquecer que as interações, menos ou mais en-
cantadas, que têm lugar em cada microcosmo editorial, são determinadas
pela estrutura do campo editorial em seu conjunto: de fato, ela determina
o tamanho e a estrutura da unidade responsável pela decisão (que vai do
“decisor” único, ou que parece único, das pequenas editoras, ao comple-
xo campo de poderes das grandes); essa estrutura dene também o poder
relativo, entre os diversos agentes, dos diferentes critérios de avaliação que
os predispõem, por exemplo, a pender para o lado do “literário” ou para o
lado do “comercial”, ou, segundo a velha oposição cara a Flaubert, a pri-
vilegiar a arte ou o dinheiro. Cada editora ocupa, em um dado momento,
uma posição no campo editorial, que depende de sua posição na distribui-
ção dos recursos raros (econômicos, simbólicos, técnicos etc.) e dos po-
deres por eles conferidos; é essa posição estrutural que orienta as tomadas
de posição de seus “dirigentes”, suas estratégias para publicação de obras
francesas ou estrangeiras, denindo o sistema de coerções e de nalidades
que se impõe, assim como as “margens de manobra”, muitas vezes bem
estreitas, que se delimitam nos confrontos e nas lutas entre os protagonistas
do jogo editorial. A mudança mais signicativa que se observa na política
de diferentes editoras tem a ver com mudanças na posição que ocupam no
campo: o deslocamento em direção às posições dominantes coincide com
uma forte tendência a privilegiar a gestão de sucessos em vez de investir
em novas experiências, e a pôr o capital simbólico que detêm a serviço de
autores cada vez mais “comerciais”, que não são os que, nos tempos míticos
de seus primórdios, contribuíram para a acumulação desse capital7.
Contra a ilusão de autonomia dos lugares de “decisão” visíveis, que
leva a ignorar as coerções do campo, basta lembrar, por exemplo, que o
7 Para avaliar o capital simbólico ligado a uma editora e a seu nome e, por meio deles, a todos os seus membros
e autores, é necessário se apoiar em um conjunto de características que contribuem para a representação
coletiva dessa editora como pertencente à “nobreza” da profissão: a antiguidade (que, em todos os universos
sociais, está associada à nobreza), a importância e a qualidade do fundo de catálogo, medido pelo número
de escritores consagrados e clássicos, e, em particular, pelo número de agraciados com o Prêmio Nobel.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT