Uma resenha sobre as vicissitudes da regulação sobre a ação renovatória no Brasil (de 1934 a 1991): rupturas e legitimidade

AutorPedro Marcos Nunes Barbosa
Páginas101-111

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1. Introdução

O presente artigo visa a abordar as modificações havidas na regência positiva do Direito Brasileiro no tocante à ação renovatória. Para tanto, será tangenciado um breve contexto histórico havido para a edição da chamada Lei de Luvas de 1934 bem como as vicissitudes políticas e jurídicas que culminaram na Lei de Locações de 1991.

Como método de análise optou-se pelo estudo dos textos legais, suas "Exposições de Motivos", além do uso de legítimas fontes secundárias bibliográficas [HESPANHA, 1994:44] e pretorianas, no intuito de apurar a ratio, a fattispecie, por detrás da "ruptura" de um paradigma jurídico que minimizava os direitos do não proprietário quanto a este mister.

Destarte, tal como foi proposto por Skinner [TAYLOR, 1988:219], a hermenêutica dos textos legais estudados foi realizada como uma ação num contexto, ou seja, tomou-se como ponto de partida que a edição de tais regulamentações se deu em virtude de uma transformação social.

O problema (rectius, a hipótese) enfrentado por este ensaio versa sobre a suposta socialização legislativa advinda com os marcos de 1934 e 1991: as modificações textuais ocorreram na senda do papel promocional do Direito, ou as vicissitudes nada mais representaram do que os anseios do mercado? Noutros termos: será verificado se as alterações nos fatos sociais, ou seja, se a intencionalidade coletiva, já haviam consolidado determinadas práticas pretorianas em momento pretérito à aplicação das novas leis.

Como delimitação de pesquisa, concentrou-se a análise jurisprudencial em três Tribunais do Distrito Federal (STF, TFR e STJ) e um do Rio de Janeiro (TJRJ).

Desta forma, após a presente "Introdução", no segundo item foram esmiuçadaa a suposta ruptura de 1934 no tocante às locações mercantis (coerente com a Teoria dos Atos de Comércio adotada no Código Comercial de 1850) bem como a legitimação do decreto de Vargas, fundamentado na tutela da parte "hipossuficiente" e de seu fundo de comércio. Em seguida usou-se das clássicas obras de Alfredo BUZAID [1981] e Darcy BESSONE [1940] no tratamento da ação

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renovatória, próximas ao contexto político havido para a vigência do Decreto 24.150. Registre-se que a eleição das referidas obras se deu em virtude da quantidade de citações havidas das mesmas nos Tribunais pesquisados e pelo diálogo explícito e parcialmente divergente havido entre tais autores.

Por sua vez, no terceiro item foi tangenciada a Lei de Locações do início da década de 1990, além de sua interessante ampliação do rol de legitimados para a propositura da ação renovatória. Com base na segunda fonte normativa acerca do direito de intratura, verificou-se o estabelecimento de um padrão de regência diferenciado na proteção do locatário, já fincado na Teoria da Empresa, que viria a ser cristalizada 11 anos depois.

Por último, sem adentrar o juízo de uma pitonisa, versar-se-á sobre o atual contexto jurídico, que poderá engendrar futuras modificações formais no direito atinente às ações renovatórias, em particular no que é tocante aos direitos fundamentais prescritos na Constituição Federal.

2. A "Lei de Luvas" de 1934

O contexto político nacional após a proclamação da República até o início da década de 1920, no século XX, era de um predomínio oligárquico dos grandes proprietários, e em especial dos latifundiários. Neste ínterim, não foi à toa que o controle político do País recebeu a alcunha de "Café com Leite", uma vez que a alternação na chefia do Poder Executivo ocorria, basicamente, entre representantes de Minas Gerais e São Paulo [CASTRO, 2011:437].

Entretanto, os comerciantes representavam outra parcela do poder político; se já estavam em ascensão (tendo em vista a indus-trialização da economia), ainda não gozavam das mesmas benesses que os latifundiários, e, portanto, buscavam transformações sociais [CASTRO, 2011:438]. Como não se desconhece, a própria análise da estrutura mercantil de um País bem revela o estado de sua economia [PRADO JR., 2011:241] e o viés de sua política.

Desta forma, com a crise internacional advinda da quebra da Bolsa de Nova York e com a mobilização social dos trabalhadores urbanos, "fratura-se" um regime oligárquico para a confecção da Constituição de 1934; formando-se outra ordem dominante, mas também uma maior participação coletiva dos assalariados [CASTRO, 2011:443].

Noutros termos, o início da década de 1930 marca, se não uma queda, uma transformação do prevalente Liberalismo econômico e político, um confronto entre velhas ordens economicamente favorecidas e a chamada "Revolução Social", no resto no mundo [HOBSBAWN, 1995:63, 113-114] e também no Brasil.

Tal pode ser constatado pela própria comparação dos "Preâmbulos" constitucionais então vividos, desde o enfoque imperial e religioso em 1824 ("Em nome da Santíssima Trindade"), passando pela visão claramente liberal em 1891 ("um regime livre e democrático"), até chegar ao discurso de legitimação social em 1934 ("um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico").

Diz-se "legitimação" [BARBOSA, 2002:2], e não propriamente "legitimidade", visto que tais valores já preexistiam ao "novo" regime constitucional de 1934, servindo de guia para as modificações no direito positivo (eficácia textual), que não necessariamente alteraram significativamente a realidade (rectius, eficácia social).

Contudo, a introdução formal de um viés social com Getúlio Vargas não significou uma expansão de valores democráticos, mas, ao revés, um progressivo e paradoxal aumento de ideais ditatoriais [LOPES, 2012:355; CHAUÍ, 2013:50]. Conforme averbado pela doutrina, utilizaram-se textos legislativos progressistas como maneira de manipular grupos antagônicos do Integralismo e dos

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comunistas [SAMPAIO, 2010:316]. O contraste de "liberdade" sem igualdade, como pseudodemocracia, além de "menor desigual-dade" sem liberdades, denota o processo de correções políticas e vicissitudes [AGUIAR JR., 2008:547] sofridas no Brasil.

Outrossim, em 20.4.1934 editou-se o Decreto 24.150 ("Lei de Luvas"), pautado numa perspectiva já menos individualista (ou, melhor, menos proprietária), tal como a Constituição que (quase) três meses depois lhe sucedeu. Entre suas previsões mais interessantes é relevante destacar seu "Preâmbulo" que direciona os fundamentos da modificação regulatória:

"Considerando que, se, de um modo geral, essa necessidade se impoz, mais ainda se torna impreterivel, tendo em vista os estabelecimentos destinados ao commercio e á industria, por isso que o valor incorporeo do fundo de commercio se integra, em parte, no valor do immovel, trazendo, destarte, pelo trabalho alheio, beneficios ao proprietario;

"Considerando, assim, que não seria justo attribuir exclusivamente ao proprietario tal quota de enriquecimento, em detrimento, ou, melhor, com o empobrecimento do inquilino que criou o valor;

"Considerando que uma tal situação valeria por um ‘locupletamento’ - condemnado pelo Direito moderno (...)."

Ou seja: tal decreto importou uma fenda à "soberania" proprietária, ainda que restrita ao âmbito privado (TFR, 3ª Turma, AC 77.895, rel. Min. Adhemar Raymundo, DJU 5.4.1984), tal como resultou numa rachadura à vertente liberal quanto à liberdade de contratar, visto que estabeleceu ao locatário uma forma de pactuação compulsória, dentro de alguns requisitos objetivos. Noutras palavras: relativizaram-se dois tradicionais institutos jurídicos [BESSONE, 1940:5] edificados sob a lógica de tutela ao mais forte, qual seja: o proprietário e o credor.

Anos mais tarde, já sob a vigência da Constituição de 1946, o STF viria a reconhecer o papel inovador da "Lei de Luvas", "diploma legal [que] veio restringir em verdade o exercício do direito de propriedade, cuja garantia, no conceito de plenitude, deixou aliás de ser, entre nós, cânon constitucional; haja vista o que deflui da vigente Carta Magna, art. 147, em que se encontra expresso que o uso daquele direito será condicionado ao bem-estar social" (STF, Pleno, RE 17.531-DF, rel. Min. Luiz Gallotti, DJU 28.8.1950).

A modificação legislativa adveio da crescente prática de aumentos abusivos nos preços dos alugueis, além da conduta corriqueira dos locadores em, praticamente, extorquir seus locatários para a repactuação. Como os locatários, em boa parte das vezes, já haviam cativado os consumidores (clientela e freguesia) a associar o comércio ao ponto, os contratantes restavam reféns do pagamento de prêmios (luvas), em favor dos proprietários, como condição para a continuidade contratual [FERREIRA, 1962:111 e 113].

Ademais, também era comum a rescisão contratual por parte dos locadores, que, uma vez verificado o êxito na formação da clientela pelo locatário, perquiriam a edificação de outro comércio de idêntica finalidade em seu ponto. Buscavam, desta forma, se aproveitar da freguesia alicerçada por outrem [ASCARELLI, 1960:74], razão pela qual o direito prescrito na "Lei de Luvas" trouxe uma inibição à concorrência, sem reconhecer qualquer "direito de propriedade" sobre a clientela.

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